Lei nº 11.802, de 18/01/1995

Texto Original

Dispõe sobre a promoção da saúde e da reintegração social do portador de sofrimento mental; determina a implantação de ações e serviços de saúde mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a extinção progressiva destes; regulamenta as internações, especialmente a involuntária, e dá outras providências.

O Povo do Estado de Minas Gerais, por seus representantes, decretou e eu, em seu nome, sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º - Toda pessoa portadora de sofrimento mental terá direito a tratamento constante de procedimentos terapêuticos, com o objetivo de manter e recuperar a integridade física e mental, a identidade e a dignidade, a vida familiar, comunitária e profissional.

Art. 2º - Os poderes públicos estadual e municipais, de acordo com os princípios constitucionais que regem os direitos individuais, coletivos e sociais, garantirão e implementarão a prevenção, o tratamento, a reabilitação e a inserção social plena de pessoas portadoras de sofrimento mental, sem discriminação de qualquer tipo que impeça ou dificulte o usufruto desses direitos.

Art. 3º - Os poderes públicos estadual e municipais, em seus níveis de atribuição, estabelecerão a planificação necessária para a instalação e o funcionamento de recursos alternativos aos hospitais psiquiátricos, os quais garantam a manutenção da pessoa portadora de sofrimento mental no tratamento e sua inserção na família, no trabalho e na comunidade, tais como:

I - ambulatórios;

II - serviços de emergência psiquiátrica em prontos-socorros gerais e centros de referência;

III - leitos ou unidades de internação psiquiátrica em hospitais gerais;

IV - serviços especializados em regime de hospital-dia e hospital-noite;

V - centros de referência em saúde mental;

VI - centros de convivência;

VII - lares e pensões protegidas.

Parágrafo único - Para os fins desta Lei, entende-se como centro de referência em saúde mental a unidade regional de funcionamento permanente de atendimento ao paciente em crise.

Art. 4º - O uso de medicação nos tratamentos psiquiátricos em estabelecimentos de saúde mental deverá responder às necessidades fundamentais de saúde da pessoa portadora de sofrimento mental e terá exclusivamente fins terapêuticos, devendo ser revisto periodicamente.

Parágrafo único - São proibidas outras práticas terapêuticas psiquiátricas biológicas, salvo nas seguintes condições associadas:

I - indicação absoluta, quando não existirem procedimentos de maior ou igual eficácia;

II - utilização, esgotadas as demais possibilidades terapêuticas, em ambiente hospitalar especializado;

III - risco de vida iminente decorrente do sofrimento mental;

IV - consentimento do paciente, caso o quadro clínico o permita, e de seus familiares, após o conhecimento do prognóstico e dos possíveis efeitos colaterais decorrentes da administração da terapêutica;

V - manifestação por escrito e com assinatura dos membros de equipe de saúde mental do estabelecimento onde será ministrada a terapêutica;

VI - exame e consentimento, por escrito, de equipe de médicos, sendo 1 (um) do estabelecimento, 1 (um) indicado pela autoridade sanitária estadual e 1 (um) indicado pela autoridade sanitária municipal.

Art. 5º - Fica vedado o uso de celas-fortes, camisas-de-força e outros procedimentos violentos e desumanos em qualquer estabelecimento de saúde, público ou privado.

Art. 6º - Ficam proibidas as psicocirurgias, assim como quaisquer procedimentos que produzam efeitos orgânicos irreversíveis, a título de tratamento de enfermidade mental.

Art. 7º - Será permitida a construção de unidade psiquiátrica em hospital geral, de acordo com a demanda local e regional.

Parágrafo único - O projeto de construção de unidade psiquiátrica deverá ser avaliado e autorizado pelas secretarias, administrações e conselhos municipais de saúde, seguido de parecer final da Secretaria de Estado da Saúde e do Conselho Estadual de Saúde.

Art. 8º - As unidades psiquiátricas de que trata o artigo anterior terão pessoal e estrutura física adequados ao tratamento de portadores de sofrimento mental e utilizarão as áreas e os equipamentos de serviços básicos do hospital geral.

Parágrafo único - As instalações referidas no "caput" deste artigo não poderão ultrapassar 10% (dez por cento) da capacidade instalada do hospital geral, até o limite de 30 (trinta) leitos por unidade operacional.

Art. 9º - A internação psiquiátrica será utilizada como último recurso terapêutico, esgotadas todas as outras formas e possibilidades terapêuticas prévias, e deverá objetivar a mais breve recuperação, em prazo suficiente para determinar a imediata reintegração social da pessoa portadora de sofrimento mental.

§ 1º - A internação psiquiátrica, nos termos deste artigo, deverá ter encaminhamento exclusivo dos serviços de emergências psiquiátricas dos prontos-socorros gerais e dos centros de referência de saúde mental e ocorrer, preferencialmente, em enfermarias de saúde mental em hospitais gerais.

§ 2º - A internação de pessoas com diagnóstico principal de síndrome de dependência alcoólica dar-se-á em leito de clínica médica em hospitais e prontos-socorros gerais.

Art. 10 - A internação psiquiátrica exigirá laudo de médico especializado pertencente ao quadro de funcionários dos estabelecimentos citados no § 1º do art. 9º.

Parágrafo único - O laudo mencionado neste artigo deverá conter:

I - descrição minuciosa das condições do paciente que ensejem a sua internação;

II - consentimento expresso do paciente ou de sua família;

III - as previsões de tempo mínimo e máximo de duração da internação.

Art. 11 - A internação psiquiátrica de menores de idade e aquela que não obtiver o consentimento expresso do internado será caracterizada pelo médico autor do laudo como internação involuntária.

Art. 12 - O laudo referido nos arts. 10 e 11 será remetido pelo estabelecimento que realizar a internação ao representante local da autoridade sanitária e do Ministério Público no prazo de 24 (vinte e quatro) horas a contar da internação.

Art. 13 - Em qualquer caso, a autoridade sanitária local e o Ministério Público poderão requisitar complementos e informações do autor do laudo e da direção do estabelecimento, ouvir o internado, seus familiares e quem mais julgarem conveniente, incluídos outros especialistas autorizados a examinar o internado, com vistas a oferecerem parecer escrito.

§ 1º - A autoridade sanitária local ou, supletivamente, a regional criará junta técnica revisional de caráter multidisciplinar, que procederá à confirmação ou à suspensão da internação psiquiátrica involuntária, num prazo de até 72 (setenta e duas) horas após sua comunicação obrigatória pelo estabelecimento de saúde mental.

§ 2º - A junta técnica revisional mencionada no parágrafo anterior efetuará, a partir do 15º (décimo quinto) dia de internação, a revisão técnica de cada internação psiquiátrica, emitindo, em 24 (vinte e quatro) horas, laudo de confirmação ou suspensão do regime de tratamento adotado, remetendo cópia ao Ministério Público no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

Art. 14 - No prazo de 30 (trinta) dias a contar da regulamentação desta Lei, os hospitais gerais e psiquiátricos que mantiverem pessoas internadas desde a data anterior a sua vigência encaminharão à Secretaria de Estado da Saúde a relação dos pacientes, juntamente com cópia de toda a documentação de cada um, informando se a internação foi voluntária ou involuntária.

Art. 15 - Vetado.

Art. 16 - Ficam vedados a criação de espaço físico e o funcionamento de serviços especializados em qualquer estabelecimento educacional, público ou privado, que sejam destinados a pessoas portadoras de sofrimento mental e que impliquem segregação.

Parágrafo único - Deve-se garantir, prioritariamente, o acesso das pessoas portadoras de sofrimento mental à educação em classes comuns, em qualquer faixa etária, com a assistência e o apoio integrados dos serviços de saúde e de educação.

Art. 17 - Os hospitais psiquiátricos e similares, no prazo de 5 (cinco) anos contados da publicação desta Lei, serão reavaliados, para se aferir sua adequação ao modelo de assistência instituído por esta Lei, como requisito para a renovação do alvará de funcionamento, sem prejuízo de vistorias e outros procedimentos legais de rotina.

Art. 18 - Os conselhos estadual e municipais de saúde bem como as instâncias de fiscalização, controle e execução dos serviços públicos de saúde deverão atuar solidariamente pela reinserção social das pessoas portadoras de sofrimento mental internadas em estabelecimentos psiquiátricos ou deles desinternadas, tomando as providências cabíveis nas hipóteses de abandono, isolamento ou marginalização.

Art. 19 - Aos pacientes que perderam o vínculo com o grupo familiar e se encontram em situação de desamparo social, o poder público providenciará a atenção integral de suas necessidades, visando, por meio de políticas sociais intersetoriais, à sua integração social.

§ 1º - As políticas sociais intersetoriais a serem adotadas deverão propiciar a desinstitucionalização de todos os pacientes referidos no "caput" deste artigo no prazo de 3 (três) anos após a publicação desta Lei, por meio, especialmente, de:

I - criação de lares abrigados ou similares, fora dos limites físicos do hospital psiquiátrico;

II - reinserção na família de origem pelo restabelecimento dos vínculos familiares;

III - adoção por famílias que demonstrem interesse e tenham condições econômicas e afetivas de se tornarem famílias substitutas.

§ 2º - As políticas sociais intersetoriais adotadas deverão criar condições para a autonomia social e econômica dos pacientes referidos no "caput" deste artigo, por meio, especialmente, de:

I - regularização da sua situação previdenciária, assessorando-os na administração de seus bens;

II - Vetado.

III - facilitação de sua inserção no processo produtivo formal ou cooperativo, proibindo-se qualquer forma de discriminação ou desvalorização do trabalho;

IV - inserção no processo educacional do sistema de ensino;

V - atenção integral à saúde .

Art. 20 - Compete às instâncias de fiscalização, controle e avaliação dos serviços públicos de saúde proceder a vistoria, no mínimo, anual dos estabelecimentos de saúde mental, tomando as providências cabíveis nos casos de irregularidades apuradas.

Art. 21 - Os conselhos estadual e municipais de saúde constituirão comissões de reforma psiquiátrica no âmbito das secretarias estadual e municipais de saúde, com vistas ao acompanhamento das medidas de implantação do modelo de atenção à saúde mental previsto nesta Lei, bem como do processo de desativação gradual dos atuais hospitais psiquiátricos existentes no Estado.

Parágrafo único - As comissões de reforma psiquiátrica serão compostas por representantes dos trabalhadores da área de saúde mental, autoridades sanitárias, prestadores e usuários dos serviços, familiares de pacientes, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Minas Gerais - e da comunidade científica.

Art. 22 - Os poderes públicos estadual e municipais, em sua esfera de atuação, disporão de 1 (um) ano contado a partir da publicação desta Lei, para passar a executar o planejamento e o cronograma de implantação dos novos recursos técnicos de atendimento apresentados pelas comissões de reforma psiquiátrica e aprovados pelos respectivos conselhos de saúde.

Art. 23 - A implantação do modelo alternativo de atenção à saúde mental de que trata esta Lei dar-se-á por meio da reorientação progressiva dos investimentos financeiros, orçamentários e programáticos utilizados para a manutenção da assistência psiquiátrica centrada em leitos psiquiátricos e instituições fechadas.

Art. 24 - O poder público destinará verba orçamentária para campanhas de divulgação e de informação periódica de esclarecimento dos pressupostos da reforma psiquiátrica de que trata esta Lei, em todos os meios de comunicação.

Art. 25 - Os serviços públicos de saúde deverão identificar e controlar as condições ambientais e organizacionais relacionadas com a ocorrência de sofrimento mental nos locais de trabalho, especialmente mediante ações referentes à vigilância sanitária e epidemiológica.

Art. 26 - Todo estabelecimento de saúde deverá afixar esta Lei em lugar de destaque e visível aos usuários dos serviços.

Art. 27 - O cumprimento desta Lei cabe a todos os estabelecimentos públicos ou privados, bem como aos profissionais que exerçam atividade autônoma que se caracterize pelo tratamento de pessoas portadoras de sofrimento mental, ou àqueles que, de alguma forma, estejam ligados à sua prevenção e ao tratamento ou à reabilitação dessas pessoas.

Art. 28 - O descumprimento desta Lei, consideradas a gravidade da infração e a natureza jurídica do infrator, sujeitará os profissionais e os estabelecimentos de saúde às seguintes penalidades, sem prejuízo das demais sanções previstas na Lei Federal nº 6.437, de 20 de agosto de 1977:

I - advertência;

II - inquérito administrativo;

III - suspensão do pagamento dos serviços prestados;

IV - aplicação de multas no valor de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos;

V - cassação da licença e do alvará de funcionamento.

Art. 29 - O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 120 (cento e vinte) dias.

Art. 30 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 31 - Revogam-se as disposições em contrário.

Dada no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, aos 18 de janeiro de 1995.

EDUARDO AZEREDO

Amilcar Vianna Martins Filho

José Rafael Guerra Pinto Coelho

Arésio A. de Almeida Dâmaso e Silva