Decreto nº 9.449, de 18/02/1930
Texto Original
Cria um grupo escolar em Campina Verde, município do Prata
O PRESIDENTE DO ESTADO DE MINAS GERAIS, resolve criar um grupo escolar em Campina Verde, município do Prata.
Palácio da Presidência do Estado de Minas Gerais, em Belo Horizonte, 18 de fevereiro de 1930.
ANTONIO CARLOS RIBEIRO DE ANDRADA
Francisco Luiz da Silva Campos
Sr. Presidente,
Tenho a honra de submeter à consideração de V. Exa. o Regulamento do Ensino Normal.
Desde que o Governo de V. Exa. empreendeu a difícil tarefa de reorganizar o ensino público em Minas, assumindo para consigo mesmo e para com o povo mineiro um largo e importante compromisso, compreendeu e declarou, de logo, que o fundo do problema, as suas raízes, assim como os fatores determinantes da sua solução, só poderiam ser atingidos e captados no domínio do ensino normal, matriz do ensino primário, que somente pela renovação e reajustamento do primeiro poderá ser renovado no seu espírito e reajustado nos seus termos.
Seria, com efeito, inútil, senão frívolo por destituído de consequências e de efeitos, planejar um largo movimento de reforma no espírito, nos processos e na organização do ensino primário, sem estender e projetar o mesmo espírito de renovação e de readaptação ao domínio do ensino normal em que os processos, a técnica e a metodologia do ensino primário passam a ser de aquisições teóricas, instrumentos de prática e de ação, incorporados à mentalidade magisterial, não apenas a título de recomendações e de advertências, senão como órgãos e tecidos consubstanciais a inteligência dos professores, dos quais seria injusto e inepto exigir o que lhes não deu uma formação profissional deficitária no que se refere ao preparo teórico e incompleto nos seus intuitos, bem como na organização dos meios destinados a sua atuação pragmática. O ensino primário vale o que valerem os seus professores e o valor destes estará, necessariamente, em função do ensino normal. Será, consequentemente, tarefa destituída de seriedade nos seus objetivos, rever o curriculum primário, refundindo-lhe os programas, estatuindo sobre métodos e processos de ensino, renovando-lhe o espírito e demarcando-lhe novas e largas finalidades. Se, ao mesmo tempo, não se procura formar a mentalidade do professor primário à medida das exigências a que ele tem de satisfazer, ordenando-lhe, desde cedo, o espírito no quadro intelectual e profissional, em que é chamado a exercer a sua atividade.
Se, porém, a campo do ensino primário tem sido objeto de uma larga e profunda investigação, de que alguns resultados teóricos e aquisições práticas de suma importância podem ser considerados como definitivos, o mesmo não ter acontecido no ensino normal, de onde se explica a fato daqueles resultados e aquisições não se haverem ainda incorporado a técnica do ensino primário, permanecendo em estado de vaga aspiração, de recomendações mais ou menos definidas, de experiências e tentativas ainda não generalizada ao domínio da prática diana e militante do magistério. Tais resultados e aquisições só se tornarão fecundos ingressando no ensino normal, afeiçoando-se neles, desde a escola profissional, a mentalidade e o espírito dos professores, introduzindo-os na circulação intelectual das Escolas destinadas à formação dos mestres, de maneira que estes os adquiram não apenas com o caráter de ensino teórico, senão como uma técnica, o que só as Escolas de Aplicação podem fazer o problema, pois, está em que nos cursos votados a preparação dos professores haja uma integração perfeita das matérias de finalidade propedêutica e profissional, de sorte que os professores se tornem, a um só tempo, senhores dos assuntos que terão de ensinar, como da sua significação no crescimento mental dos alunos, cônscios, e igualmente, dos fundamentos e finalidades da escola primária, assim como da técnica dos processos e dos métodos de ensino. Ora, nenhum training profissional será adquirido pelo simples fato da acumulação ou multiplicação das matérias; somente poderá resultar da integração dos vários objetos de estudo e da prática sobre eles exercida.
Não se poderá esperar nenhum progresso na instrução primária se se não abordar de frente o complexo problema do ensino normal. A prova está em que o desenvolvimento da instrução primária, não apenas na sua extensão mas na sua qualidade, só de pouco tempo a esta parte se tem feito notar, com a acentuada melhoria que os pais mais cultos se têm esforçado por introduzir nas escolas destinadas a formar professores. Nem se diga que a expansão e a difusão do ensino elementar se possa fazer independentemente de progressos e reformas no ensino normal. A difusão da instrução primária estará sempre em função da sua qualidade. Um ensino inferior não se imporá, por maiores que sejam os esforços e os recursos de compulsão, ainda ao povo menos esclarecido. Um ensino inferior despovoa as escolas pela infrequência, suscitando nos alunos a repugnância intelectual por ele, comprimindo neles o curso do seu crescimento mental, que somente o ensino de boa qualidade favorece, orienta e provoca.
A escola em que a ensino é de má qualidade será evitada pelas crianças como um castigo, talvez o pior dos castigos, porque morno e sem aparências dramáticas. Pela frequência da escola se apurará o seu valor. E’ hoje fora de dúvida que a frequência é um dos melhores critérios por onde aferir a eficiência do ensino. Basta ver as interessantes estatísticas de Brooks ("Educational Review", vol. 26, pág. 363), Ayres ("Laggards in our School", pags. 99 a 102), Greenwood (Educational Review", vol. 37, págs. 342 a 348). Finalmente, todas as críticas que se dirigem ao ensino primário são, de modo indireto e oblíquo,dirigidas ao ensino normal, pois que o ensino primário não são os programas, a distribuição das matérias, senão o modo de ministrá-lo, a sua dosagem, a qualidade do veículo em que a noção passa do mestre ao aluno, em uma palavra, a técnica de apresentação dos assuntos e noções e, por conseguinte, em resumo e afinal, – o professor.
Nada mais ilusório, portanto, do que supor que a difusão do ensino deve primar sobre a sua qualidade. O ensino se estende e se difunde somente na medida da sua utilidade e só o ensino de boa qualidade será útil, porque somente ele poderá competir, com vantagem, com as atrações que a vida oferece a alma infantil, toda ela talhada nesse tecido de instintos ávidos, de tendências ativas e de fantasias aladas, que só se darão por satisfeitas, nutrindo-se, não de palha ressequida, senão de substâncias ainda animadas de espírito de vida.
Eis, portanto, como difusão do ensino primário e boa qualidade dele são termos equivalentes, como o problema da instrução popular só poderá ser resolvido melhorando-se o ensino primário e com a melhoramento do ensino primário se acha visceralmente preso e dependente da boa qualidade do ensino normal.
Os defeitos do ensino primário não estão nos seus programas, nem na organização do seu curriculum; estão no professor. Deste é o método do ensino, dele essa técnica indefinível de captar o interesse infantil, dele esse tecido intelectual plástico, sensível e irradiante, em que as nações tinham o seu corpo visível e de cuja substância as ideias improvisam essa espécie de mãos ou de prolongamentos preênseis, que lhes possibilitam apropriar-se da realidade e da vida, incorporando-se as cousas, tornando-se concretas, intuitivas e palpáveis.
Sem isto não haverá ensino primário e isto só os professores convenientemente preparados poderão dar.
Qualquer reforma no ensino primário reclama pressupõe, portanto, uma reforma no ensino normal.
A que tenho a honra de submeter à consideração de V. Exa. foi calcada nas ideias e propósitos já por várias vezes externados por V. Exa. seja em relação ao ensino primário, seja em relação ao ensino normal.
O ensino normal é, antes de tudo, um ensino profissional. O que nas Escolas Normais é ensino normal propriamente dito se reduz ao equipamento dos alunos dos apetrechos técnicos indispensáveis ao magistério: o training, o estudo acompanhado da aplicação dos métodos e das técnicas pedagógicas. O ensino normal não é uma propedêutica intelectual, um simples instrumento de iniciação e de cultura geral; ele visa, sobretudo, antes de tudo, a aquisição de uma técnica, de psicológica, de uma técnica intelectual e de uma técnica moral. É o que acentua o Regulamento, não só na parte que se refere o ensino preparatório propriamente dito, recomendando aos professores a maior atenção ao lado educativo, bem como a metodologia das disciplinas que professam, de maneira que as suas aulas constituam verdadeiros modelos, já do ponto de vista científico ou literário, já do ponto de vista metodológico, como na parte em que destaca a curso de aplicação nas escolas do segundo grau, reservando os dois últimos anos a teoria e a prática das técnicas pedagógicas, integrando, assim, a ciência e a aplicação, de sorte que o ensino não seja apenas constituído de exposições e de modelos, senão também de trabalhos de oficina, de tentativas e de experiências, únicas capazes de conduzir ao conhecimento dos processos, que só se aprendem praticando e executando toda a parte relativa à prática profissional constitui urn verdadeiro "syllabus" de advertências, conselhos e recomendações tendentes ao aperfeiçoamento do aprendizado magisterial. Todo o ensino, porém, ainda o preparatório, se acha penetrado das finalidades do ensino normal; os exercícios complementares constituirão uma parte importantíssima na execução dos programas, recomendado, insistentemente, o apelo à colaboração e a iniciativa dos alunos, de maneira que adquiram, desde cedo, o hábito essencial ao professor, de investigar, documentar-se, tornar iniciativas pessoais, o que resultará em benefício, não somente do ponto de vista intelectual, como do ponto de vista moral, incutindo-lhes o senso da responsabilidade e habituando-os ao sentimento à necessidade do esforço pessoal. Além disso, o Regulamento insiste na utilidade em os professores do curso normal terem sempre em vista os programas primários, conhecendo-os a fundo e orientando, desde o começo, o espírito dos alunos para os processos e os métodos da sua execução.
O curso de aplicação assim organizado, reservando-lhe os dois últimos anos, constituirá, certamente, um progresso notável no sentido de melhorar e revigorar a disciplina intelectual, que o ensino terá por fim, precípuo.
O ideal seria que as Escolas Normais se destinassem exclusivamente à ciência e a prática das técnicas pedagógicas, feitos os estudos preparatórios em estabelecimentos de ensino secundário. O Regulamento procurou aproximar-se desse ideal permitindo que as disciplinas do curso preparatório sejam estudadas fora da Escola, podendo o candidato prestar os exames respectivos, a fim de matricular-se diretamente no curso de aplicação, que encerra o curso normal propriamente dito.
Esta, mutatis-mutandis, a organização que tem presentemente a ensino normal na Alemanha, na Inglaterra, na Áustria e nos Estados Unidos. A diferença está, apenas, em que nesses países a tendência é alargar o curso, aumentando-lhe as exigências, elevando o seu padrão intelectual. Na Alemanha, na Áustria e nos Estados Unidos, já a organização do ensino normal tende a nivelá-lo ao ensino universitário, partindo do princípio de que as técnicas pedagógicas do ensino primário só se adquirem mediante estudos teóricos largos, progressivos e completos.
Infelizmente, não estamos em condições de dar ao ensino normal uma organização em moldes tão amplos. Era necessário, porém, elevar mais alto possível o seu padrão intelectual e técnico. Somente ao Estado seria possível fazê-lo, no momento. Daí a divisão de ensino normal em dois graus, de que o segundo, de curso mais longo e mais completo, competirá exclusivamente ao Estado, para o que se torna necessário aumentar o número de Escolas oficiais, de maneira a servir as cinco grandes regiões do Estado.
O ensino do primeiro grau, de curso menos amplo na sua envergadura e mais curto na sua duração, será deixado à livre iniciativa particular, com a assistência e a fiscalização do Estado. E' certo que aos diplomados por esses cursos confere o Regulamento menos prerrogativas; não menos certo, porém, que o curso do primeiro grau têm uma duração menor de dois anos do que o do segundo grau, facultando, ainda, o Regulamento aos diplomados do primeiro grau, mediante um estágio de dois anos, como professores primários e a prestação de algumas provas complementares, obterem o diploma de segundo grau.
A organização que acabo de esboçar satisfaz, a um tempo, as necessidades prementes do presente, em que o Estado está a exigir para as suas escolas isoladas um grande número de normalistas, como aos imperativos indeclináveis de atender a instante necessidade de melhorar e graduar em um escalão mais alto o preparo dos futuros professores.
A construção, porém, só se tornaria acabada só se pudesse, desde já, instituir o Curso de Aperfeiçoamento, que seria o nosso Seminário Pedagógico, destinado a treinar uma elite de professores, bem como os assistentes técnicos, nos recentes métodos de ensino, e em técnicas pedagógicas certamente complexas, mas de divulgação indispensável no meio magisterial, a bem da eficácia do ensino primário e das suas imperiosas finalidades no quadro da cultura contemporânea. Razões óbvias, entretanto, obrigam v. ex. a adiar a fundação de tão útil instituto. Será de benefício este adiamento, por quanto permitir que ele se vá desenvolvendo gradual e espontaneamente no curso de aplicação, abrindo, assim, oportunidade, ao invés de uma criação de todas as peças, muitas vezes falha nos seus meios e defectiva na sua organização, a uma criação espontânea, mediante tentativas e experiências, que o sucesso consolidará de modo mais seguro. Assim o Regulamento estabelece que o curso de Aplicação fará as vezes do Curso de Aperfeiçoamento, até que este seja definitivamente organizado.
As demais modificações introduzidas no curso normal consistem no desdobramento da cadeira de física e química e história natural, na criação da cadeira de biologia e higiene e na de psicologia educacional.
As ciências físicas e naturais destinava o passado Regulamento tempo a evidência insuficiente para a aquisição das mais úteis noções que possam servir de objeto ao ensino primário, noções que constituem o pressuposto de toda cultura moderna, ainda a mais sumária, e de tão evidentes benefícios para o homem no seu trato com a natureza, material ou espiritual.
O estudo da biologia humana e da higiene não podia deixar de integrar-se, como disciplina autônoma, no curso destinado à formação do professorado primário. A influência dos pontos de vista biológicos sobre a educação, a necessidade do conhecimento das forças que atuam no crescimento físico e mental das crianças, dos fatores orgânicos que determinaram as suas reações e o seu comportamento físico e intelectual, enfim, todos os problemas da educação se acham tão intimamente ligados ao estudo do organismo humano e das suas reações, que o casino da biologia humana não podia deixar de constituir uma parte das mais importantes do curso normal graduado.
Por sua vez, noções de higiene e puericultura, ministradas com caráter científico, são da maior relevância, não somente para utilidade das escolas primárias, como da população em geral, cujo benefício reverterão os conhecimentos do professor nesse domínio ainda entre nós tão descuidado.
A criação da cadeira de psicologia educacional representa uma necessidade imperiosa, cuja satisfação vem integrar o curso normal de uma disciplina indispensável à formação da mentalidade do professor primário.
Não se compreende, com efeito, que a psicologia educacional, a cuja influência se deve a modificação do curriculum escolar, bem como a renovação dos métodos de ensino, deixe de constituir matéria de estudo nas Escolas destinadas à preparação de professores. A matéria prima da escola é a crença: o ensino a tem, a um só tempo, como o instrumento e como fim.
Ao professor, se é indispensável estudar e conhecer as noções que se propõe ensinar, não é indispensável o estudo e o conhecimento desse material plástico e nobre, cujas propriedades corporais e espirituais constituem, a um só tempo, meios auxiliares e limitações legítimas e resistências formais a sua ação. Conhecer e utilizar aqueles a estas reconhecer e respeitar, eis outras tantas situações difíceis e complexas, a que o professor, abandonado a sua só experiência ao seu critério intuitivo, não poderá muitas vezes remediar senão por tentativas demoradas e penosas que resultarão em perda de tempo, em agravos, algumas vezes irreparáveis, à natureza da criança ou em compromissos equívocos e incertos, de que saem comprometidos o prestígio da escola ou os direitos da criança.
Se o destino da escola é a crença, o conhecimento da criança quanto mais completo mais facilitará a escola o exercício cria sua missão. Não se concebe, com efeito, que as Escolas Normais possam preencher os seus fins sem um estudo, ainda que sumário, por parte dos seus alunos, da natureza da criança, da dinâmica dos seus interesses e dos seus desejos, das leis, das formas e dos graus do seu crescimento mental, das suas atividades e das suas tendências, de todas as forças de cuja colaboração essencial depende, em última análise, a ação do professor, a utilidade e a eficácia do seu ensino.
Não ocorreria a ninguém, como acentua Claparéde, organizar uma escola de horticultura sem incorporar aos seus programas noções sobre o mundo vegetal, as leis de crescimento das plantas e o seu regime de vida. Se assim é nas escolas de horticultura, em relação às plantas, porque não será nas escolas normais, em relação à criança?
De que vale refundir e reorganizar os programas, senão para serem executados? Como executá-los, senão por intermédio de uma técnica? Quais os fundamentos da técnica, onde encontrar os seus motivos determinantes e a sua razão de ser, senão na natureza da criança? Como resolver tais problemas sem entrar no conhecimento da natureza infantil, em que se encontram as suas raízes e os seus termos? Outras tantas questões de psicologia, que o professor verá suscitadas a cada momento no curso da sua atividade profissional.
Dir-se-á, porém, que serão antes questões de técnica do que de ciência, de tato, de instinto e de dons do que de conhecimento exato. E' certo que o tato, o instinto, o dom, representam um elemento de certa importância em toda atividade humana, particularmente a do professor. A técnica, porém, será tanto mais perfeita quanto mais claras e firmes as suas bases científicas. A técnica é, como a ciência, uma atividade racional; a técnica tende a ciência na medida em que se aperfeiçoa e se organiza, A técnica que não tende a escrutar as suas razões de ser a decompor o seu mecanismo, a esmiuçar ,e recompor as combinações de qual ela se compõe, tende a rotina e a repetição iterativa dos mesmos processos do dia em que nasceu. Somente pela razão a técnica se aperfeiçoa e se completa, porque só a razão não se satisfaz por si e consigo mesma, porque só ela é capaz de representar e, por conseguinte, de apetecer e de tender a imagem que nela se desenha e representa.
Como diz Herbart "a prática produz apenas a rotina; só a teoria nos ensina a consultar a natureza”.
Mas, se a técnica não resulta da ciência, de que resultará então? Do dom, do instinto, dessa propriedade indefinível, que se chamará tendência, vocação, simpatia com o objeto, etc. Certamente, o dom será muito útil ao professor; o instinto, a vocação, a tendência conduzi-lo-á, muitas vezes, sem que atine com a razão, pelo caminho certo; a simpatia com o objeto poderá, em alguns casos, levar, por vias mais ou menos obscuras, ao seu conhecimento, seguramente muito útil, do ponto de vista prático, mas sempre confuso e equívoco. O conhecimento pelo instinto será portanto, um conhecimento rudimentar, um conhecimento muito bom em falta de outro; não será, porém, conhecimento que satisfaça, se a inteligência pode fornecê-lo mais claro, mais exato e mais completo. Com os nossos instintos somos, seguramente, capazes de satisfazer a grande parte dos nossos desejos e das nossas necessidades: podemos abrigar-nos e defendermo-nos. Se, porém, deixarem de intervir a inteligência e o conhecimento científico, como serão rudimentares os nossos abrigos e defectiva,a nossa defesa!
A intuição será, portanto, um conhecimento provisório, de que nos valeremos em falta de outro. E' certo que há homens em que o dom, a intuição, o instinto atingem a tal grau de radiação a de pureza, que se diria neles instinto e inteligência não se distinguem, porque tudo é visão direta e imediata. Tais, na educação, um Rousseau e um Pestalozzi. O gênio abre os olhos e vê, ainda, as formas que começam apenas a esboçar-se, porque todo ele é visão e, como em Goethe, nele as ideias, por mais abstratas, revestem-se de formas definidas e o objeto, por mais concreto, trai o tipo da que deriva e a classe a que pertence e conduz à abstração que o resume e esquematiza. Só os gênios, porém, conseguem, lançando esses golpes de sonda ao acaso da sua fantasia, recolher os segredos cuja chave a natureza somente revela ao comum dos homens, pelos trabalhos pacientes e humildes da inteligência.
O magistério, com as demais profissões, não pode, porém, contar com os gênios, senão por exceção e por acaso.
Que já fez, com efeito, no domínio do ensino primário, da sua organização e dos seus métodos, o dom ou o instinto do professor? Quais as renovações resultantes da sua aplicação? O conhecimento da criança adiantou, porventura, mais da experiência e da intuição dos professores do que do estudo metódico, da exploração científica e das investigações conduzidas e controladas pela inteligência consciente dos seus processos e aplicada expressamente ao seu objeto?
Demais, que garantia oferecem os professores de que possuam todos eles esse dom? A profissão não implica a vocação. Não se é professor ou advogado porque se possuem as tendências inatas para o magistério ou a advocacia. De um inquérito realizado por Jonckheere, na Bélgica, resultou que de trinta e cinco alunos nenhum ingressou por vocação a Escola Normal.
Ainda que o dom suprisse o estudo e o conhecimento, seriam estes indispensáveis a maioria do professorado, destituída, como acontece a maioria dos outros profissionais, dessa visão instantânea, de que a natureza não dotou o comum dos homens. A menos que não queríamos entregar a sorte da alma infantil a inconsciência, a cegueira, a ignorância destituída de gênio ou ao charlatanismo dos preconceitos populares, torna-se indispensável e imperioso aparelhar os futuros professores dos conhecimentos, os mais amplos e os mais claros, da natureza da criança, dos seus apetites, do sua imaginação, do imprevisto e da originalidade, em relação ao adulto, do seu comportamento intelectual e afetivo.
Nem se diga que a prática supre o dom e dispensa a ciência. A prática é rotineira e obstinada, obtusa aos ruídos de dentro e surda aos rumores de fora, satisfeita de si mesma, embevecida nos seus processos, adormecida pelo seu mecanismo de repetição, que dá às mesmas horas, os mesmos sinais e executa os mesmos movimentos. Se a inteligência não intervem, sacudindo-a e quebrando-lhe nas mãos os instrumentos, a sua tendência é a continuar e a repetir no dia de hoje o dia de ontem, no ano futuro o ano passado. Não só na escola, mas em todos os domínios da atividade humana. A indústria é a mais poderosa organização do mundo moderno. Foi, porventura, dela, da sua rotina, das suas práticas, dos seus hábitos, da repetição dos seus processos que emergiu a ciência da organização racional e econômica do trabalho humano ou da organização das técnicas industriais — o taylorismo, em suma?
Seria, acaso, da rotina e da prática escolar que criam resultado a renovação da técnica pedagógica e as aquisições metodológicas e psicológicas que começam apenas a atuar no domínio do ensino primário, renovando-lhe o espírito e operando uma verdadeira revolução nos seus processos? Seriam devidos à rotina escolar os conhecimentos mais ou menos exatos sobre a evolução dos interesses infantis e a sua utilização como centros destinados a organizar as noções, conferindo-lhes significação e estabelecendo entre elas, umas com as outras, e entre elas e a mentalidade dos alunos essa rede de conexões, de cuja trama fazer as ideias o seu corpo, tornando-se concretas e inserindo-se, desta forma, no contexto da realidade? Da rotina escolar, por ventura, os testes de inteligência, a graduação e a classificação dos alunos, a noção das diferenças individuais, as várias técnicas do ensino, ainda em tentativa, constituídas de planos de instrução individual, os processos da escola ativa, a pedagogia de Dewey, as aquisições e os postulados psicológicos, em suma, que constituem, necessariamente, os pressupostos de todo esse movimento largo, imenso, de contornos ainda não acentuadamente definidos, que, neste momento, na Alemanha, na Inglaterra, na Bélgica, na Suíça, nos Estados Unidos, entra pelas portas das escolas a dentro, perturbando a sua ordem, a sua prática, Os seus processos, o seu mecanismo, os seus hábitos, a sua paz, a sua preguiça, exigindo-lhes que se adaptem às necessidades do mundo contemporâneo, aos imperativos de sua ciência, da sua industria, do seu trabalho e da sua cultura?
Se quisermos encontrar a origem de todo esse movimento, que se assemelha a um ato de despejo das velhas escolas adormecidas na sua prática e na sua rotina, deveremos nos dirigir, não aos práticos do ensino, mas ao Instituto Jean-Jacques, em Genebra, as Universidades de Bruxellas, as Universidades americanas, as Universidades e Seminários da Áustria e da Alemanha, aos psicólogos, aos Koffka, aos Stern, aos Spranger, aos Claparéde, aos Decroly, aos Dewey.
Se assim é, portanto, se os psicólogos baixaram a mão sobre as escolas, chamando a lição os professores, se os métodos e as técnicas do ensino começam a prestar contas e biologia e a psicologia, como, sem erro de ofício, não ensinar aos futuros professores a linguagem em que eles têm de se entender com os seus mestres; como, sem faltar com o dever de assistência, não tanto aos professores quanto às crianças que lhes são confiadas, deixar aqueles na ignorância da matéria prima com que irão lidar e das técnicas da sua elaboração?
Eis como a psicologia, não apenas a psicologia geral mas a psicologia educacional, constitui parte indispensável ao equipamento intelectual do professor primário. Certamente, com ela os que forem providos de dons especiais terão esses dons acrescidos, pela ciência e aqueles que forem cegos da intuição terão com ela, de certo modo, suprida a sua cegueira.
Em um plano de reforma do ensino normal, não poderia deixar de ser conferido à psicologia educacional o lugar que lhe compete, não somente no plano da cultura geral, mas, e principalmente, no plano destinado à aquisição das técnicas pedagógicas.
A sua colocação no curso de aplicação impunha se por dois motivos: pela maior madureza de espírito por parte dos alunos desse curso, como pela óbvia razão de que somente nele podem professor e alunos encontrar o material apropriado a um estudo não apenas teórico, senão acompanhado de observação, experiência, exercícios e demonstrações.
As classes anexas não se destinam tão somente a aulas modelos, mas, igualmente, a objeto de observação e de conhecimento da natureza infantil e de aplicação das lições da psicologia, quer sobre a individualidade da criança, quer sobre as suas reações às diversas técnicas pedagógicas.
Finalmente, o Regulamento desdobra a cadeira de história do Brasil e geral, constituindo a cadeira de história da civilização e da educação, reformando o espírito em que até hoje se tem ensinando a primeira e dando maior latitude ao estudo na história pátria. Como v. exc. verá dos programas, a história da civilização se reduz ao estudo das forças que atuaram na formação das diversas fases da cultura, aplicando, neste ponto, ao estudo da história, o método genético, pois que o melhor meio de estudar e compreender um complexo, como seja o mundo contemporâneo, é o de investigar e estudar o processo da sua formação e do seu crescimento. O estudo da história da civilização se esforçará por tornar vivos e concretos na biografia dos grandes homens os episódios que conferem a estes homens a sua significação histórica, condensando, assim, em pinturas vivas e empolgantes, séries de acontecimentos, que para se tornarem significativas e claras exigem sejam postas em conexão com vidas humanas capazes de lhes dar o sentido e o interesse, que só a individualidade humana é capaz de despertar e satisfazer.
Como muito bem observa Dewey, uma das partes mais desprezadas na história é a história intelectual, a saber, a história da adaptação e utilização das forças naturais em benefício da sociedade. Um dos mais importantes desses processos de adaptação e de utilização é, sem dúvida, a educação; somente a ela e aos descobrimentos científicos deve a humanidade essas formas evoluídas de associação e de cooperação, que caracterizam a nossa fase de cultura. O melhor meio de conhecer uma coisa é conhecer a sua gênese, tal o postulado do método genético, de corrente aplicação em todos os domínios científicos.
O conhecimento dos métodos e processos do ensino, assim corno dos seus resultados, só poderá ser adquirido mediante a sua historia, a historia das suas tentativas, dos seus sucessos, das suas aplicações.
A história da educação terá, ainda, a vantagem de incutir na inteligência dos professores a verdade, que nunca é demais repetir, de que somente a educação tornou possível a civilização do homem, que dela depende o seu presente, como dependerá o seu futuro, e que os povos que não cuidam da educação se acham, por isto mesmo, condenados a essas regressões históricas, de que não conservam a memória porque não deixaram testemunhos.
Submetendo a alta consideração de v. ex. o Regulamento do ensino normal, que dentro em poucos dias será completado pela publicação dos seus programas, congratulo-me com v. exc. por haver concluído, quanto ao ensino público, a primeira parte do seu programa.
Começará agora a parte mais árdua e mais difícil, que é a da sua execução. Estou certo de que v. exa. não faltará com a sua assistência e os seus conselhos aqueles a quem incumbe pôr em prática as ideias por v. exa. tão clara e oportunamente exposta.
Secretaria do Interior em Belo Horizonte, 20 de janeiro de 1928. — Francisco Campos, secretário do Interior.