Lei do superendividamento tem dificuldades em ser efetivada
Convidados do Fórum Técnico apontaram gargalos e fizeram sugestões para prevenir e resolver o problema que afeta cerca de um terço da população brasileira.
Falta de fluxos estabelecidos e de portas de acesso têm dificultado a aplicação da Lei Federal 14.181/2021, que trata da prevenção e do tratamento do superendividamento. Essa foi a tônica das palestras da manhã desta terça-feira (18/11/25) do Fórum Técnico Direito do Consumidor: Por melhores leis e relações de consumo.
Entre as sugestões apresentadas, estão a de aplicação de sanções a credores que se negam a colaborar e, ainda, a proibição de saques com cartões de créditos consignados. O evento é realizado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e em seu quarto encontro teve como tema “Prevenção e tratamento do superendividamento: um fenômeno crescente”.
Considerada um avanço legal no tratamento do superendividamento, a lei federal possibilita o tratamento do problema em um sistema bifásico. Primeiro, uma câmara autocompositiva, com a participação do devedor e de todos os seus credores, tenta construir um plano de pagamento. Caso não se alcance o acordo, passa-se para a fase judicial, com vistas a um plano compulsório.
Um dos problemas, para o juiz Juliano Carneiro, é a falta de fluxos para a efetivação do procedimento. De acordo com o representante do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), alguns magistrados entendem a fase da câmara autocompositiva como obrigatória, porém a comarca não possui porta de entrada e fluxos para o consumidor iniciar o caminho.
O início do processo poderia ser por meio de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) ou pelos órgãos de defesa consumidor, mas a maioria dos municípios ou não possui tal estrutura ou as instituições não estão preparadas para tratar do superendividamento. “Por isso, a fase da autocomposição não tem funcionado”, concluiu Juliano Carneiro.
Com vistas a resolver esse problema, o procurador do Estado do Espírito Santo, Leonardo Garcia, sugeriu a criação de varas específicas para o atendimento dos consumidores. Atualmente, tais questões são tratadas em varas cíveis, que atendem também outras demandas, como disputas familiares.
O convidado também defendeu a especialização dos Procons para tratar do superendividamento, tendo em vista o alto índice do problema no País. Segundo Leonardo Garcia, 30% da população brasileira está nessas condições. Os dois convidados também defenderam sanções mais efetivas para as instituições financeiras que lesam os consumidores e abusam nas condições de crédito.
Em coro, a delegada Elyenni Célida da Silva, da 1º Delegacia Especializada de Defesa do Consumidor, acrescentou que muitos dos credores agem de má-fé na oferta de serviços. Em certos casos, são golpes que precisam ser tratados na esfera criminal. “É um problema de saúde pública, o índice de tentativa ou suicídio por endividamento é enorme”, afirmou.
A presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva, advogada Lilian Salgado, explicou que o instituto tem entrado com ações coletivas com vistas a garantir punições aos credores que agem de má-fé. Segundo ela, atualmente, são mais de 300 ações do gênero contra instituições financeiras.
Crédito consignado é uma das causas do superendividamento
Os participantes do encontro falaram também da necessidade de atuar na prevenção ao superendividamento. O crédito consignado, criado pela Lei Federal 10.820, de 2003, foi apontado como um dos vilões. A presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva, advogada Lilian Salgado, indicou que ele é o principal responsável pelo endividamento de idosos.
De acordo com a advogada, o consignado, que implica desconto direto na folha de pagamento, permite comprometer até 45% dos proventos. Em uma realidade em que 85% dos aposentados recebem menos de dois salários mínimos, isso reduz a qualidade de vida dos idosos. Há, ainda, os casos dos golpes que abusam da ingenuidade e dificuldades desse grupo.
A modalidade de crédito tem baixo risco para as instituições financeiras, já que as chances de inadimplência são pequenas. Apesar disso, os juros cobrados são altos, como explicou Lilian Salgado, tornando as dívidas difíceis de serem pagas. Além disso, os contratos são dificilmente revogados, segundo a convidada.
Um dos produtos oferecidos no contexto exposto pela advogada é o cartão de crédito consignado. Para o procurador Leonardo Garcia, o cartão, criado em 2008 e regulamentado em 2015 pelo INSS, permite saques e compras com desconto direto nos proventos recebidos pelos titulares.
É possível, com o cartão, acessar um valor que corresponde a 160% dos proventos, sendo que 70% do crédito pode ser retirado via saque. Leonardo Garcia afirmou que 97% das pessoas que contratam o cartão fazem um saque imediatamente. “Ou seja, não é cartão, é empréstimo”, concluiu, dizendo que os juros e condições do cartão são piores do que os de empréstimos.
O procurador defendeu, no âmbito de Minas Gerais, a vedação a descontos nessa modalidade em subsídios dos servidores públicos estaduais, também público-alvo desse tipo de crédito. Segundo ele, nem mesmo a regulamentação do Banco Central (Bacen) voltada para cartões de crédito é válida na modalidade consignada, tornando os juros ainda mais abusivos.
Para Alessandra Camargo, gerente de Normas e Relacionamento da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), as ações de educação financeira são uma frente fundamental de combate ao superendividamento. A especialista apresentou uma série de iniciativas nesse sentido, entre elas a Plataforma Meu Bolso em Dia, que não é vinculada a nenhuma instituição financeira e é validada pelo Bacen. De acordo com ela, qualquer Procon pode usar os conteúdos do blog em seus portais e ações de orientação ao consumidor.
Felipe Comarela, coordenador do Núcleo de Direito do Consumidor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e representante da OAB, aborda em suas falas o problema contemporâneo que as bets representam. De acordo com ele, 36% da população brasileira aposta ou já apostou. Felipe também defende que ações governamentais protejam o consumidor por meio da normalização, regulação e fiscalização.
Ele citou algumas leis presentes no mercado das bets e destaca que elas determinam ser preciso deixar claros os riscos que envolvem as apostas, mas que isso não é o bastante.
Comparando as bets à indústria do cigarro até os anos 1990, Felipe afirma ainda que é um absurdo que todos os times da primeira divisão do futebol brasileiro sejam patrocinados por bets, pois não existem níveis seguros para apostas.
A deputada Carol Caram (Avante) agradeceu as contribuições dos presentes e explicou que várias das sugestões apresentadas nos encontros anteriores do Fórum já foram transformadas em propostas legislativas. Ela afirmou que os avanços serão sensíveis às contribuições.
Também serão formados grupos de trabalho na Escola do Legislativo para discutir e apresentar propostas relacionadas ao superendividamento.
