Cachaças do Vale do Piranga e de Pitangui podem ganhar identificação geográfica
Informação foi divulgada em reunião que discutiu a necessidade de políticas públicas que valorizem a cachaça produzida em comunidades quilombolas.
Conhecido mundialmente pela sua produção de cachaça, o município de Salinas (Norte de Minas) está servindo de exemplo para outras regiões de Minas Gerais, que são foco de outros dois processos de identificação geográfica de produção artesanal de cachaça: o Vale do Piranga, no Alto Rio Doce; e a região do município de Pitangui (Centro-Oeste).
Essa foi uma das novidades discutidas em audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) nesta terça-feira (16/12/25), pela Comissão de Cultura, que debateu as contribuições do povo negro para o desenvolvimento dos modos de fazer a cachaça artesanal de alambique em Minas Gerais.
As informações sobre os processos de identificação geográfica do Vale do Piranga e de Pitangui vieram do coordenador da Câmara Técnica Estadual de Cachaça de Alambique da Empresa Mineira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater/MG), Lucas Carneiro, e do coordenador de Articulação Agroindustrial e Agregação de Valor do Ministério da Agricultura e da Agropecuária (Mapa), Fabrício Santana.
A expectativa é que essa identificação geográfica seja o início de um processo de valorização dos produtos regionais, de forma semelhante ao que ocorreu com Salinas. Isso também traz, segundo Lucas Carneiro, um resgate de valores históricos. Uma das descobertas desse trabalho foi um alambique do início do século XVIII, o mais antigo em operação no Estado, que existe no município de Presidente Bernardes (Mata), no Vale do Piranga.
Para a vice-presidenta da Comissão de Cultura e autora do requerimento para realização da reunião, deputada Andréia de Jesus (PT), a principal preocupação é que esse processo de identificação e valorização beneficie também as comunidades quilombolas e o povo negro. “Pesquisas históricas demonstram que os africanos escravizados foram os principais responsáveis pelo domínio técnico da cultura da cana, dos processos de fermentação e destilação”, destacou ela.
Ela cobrou uma política de fomento diferenciada para estas comunidades, a fim de enfrentar a desigualdade estrutural que limita seu acesso a políticas públicas de apoio, certificação e crédito.
A mesma defesa foi feita pelo professor de História José Newton Meneses, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em história alimentar mineira, ele defendeu uma reorientação de políticas públicas. “A política de patrimônio precisa ter caráter de inclusão. Não como foi feito até hoje, com exclusão”, cobrou.
Meneses foi um dos responsáveis pelo registro do processo de produção do queijo artesanal em Minas Gerais. “Posso estar equivocado, mas eu acho que esse tipo de pesquisa ainda não foi feita sobre a cachaça. Há um risco de perda deste processo”, alertou ele.
Comunidade quilombola usa a cachaça como instrumento de luta e identidade
Um dos exemplos dessa produção de cachaça pelo povo negro é a Pontinha da Cana, bebida exibida na audiencia pública por Renato Gonçalves, morador da Comunidade Quilombola de Pontinha, no município de Paraopeba (Central). “A gente quando vai entrar na viela das políticas públicas, a gente fica muito abandonado nisso”, queixou-se Gonçalves.
Ele afirmou que a produção de cachaça é um instrumento de luta da comunidade, que busca recuperar o controle de um território que hoje está ocupado por uma empresa de monocultura de eucalipto. “Pontinha briga há muito tempo e de maneira muito ferrenha para que o processo do Incra se concretize e a gente possa ter domínio desta terra”, afirmou. O reconhecimento oficial da Pontinha da Cana poderia ajudar nisso, uma vez que hoje a maior parte da produção é comercializada apenas na própria comunidade e arredores.
A importância da aguardente de cana para o povo negro também foi explicada, durante a audiencia pública, pelo Pai Ricardo de Moura, mestre de saberes tradicionais de matriz africana. “O sangue dos meus (antepassados) aguou quantos canaviais?”, lembrou ele.
Uma oportunidade para as comunidades quilombolas que produzem cachaça artesanal foi divulgada pelo representante do Mapa, Fabrício Santana. Ele informou que há um edital de premiação dos “Guardiões da Sociobiodiversidade”, no valor de R$ 50 mil, que selecionará doze comunidades quilombolas.
Já o analista de Patrimônio Cultural Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), Gabriel Nunes da Silva, disse que as informações sobre o processo necessário para obtenção de registro estão disponíveis no site da instituição. Ao final da reunião, a deputada Andréia de Jesus afirmou que um dos requerimentos elaborados é para solicitar ao Iepha que tome a iniciativa de buscar a anuência das comunidades quilombolas para iniciar processos de registro de suas cachaças artesanais.
