PL PROJETO DE LEI 3586/2025
Projeto de Lei nº 3.586/2025
Reconhece como de relevante interesse cultural do Estado de Minas Gerais o modo de fazer arte sacra da cidade de São João del-Rei.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – Fica reconhecida como de relevante interesse cultural do Estado, nos termos da Lei nº 24.219, de 15 de julho de 2022, o modo de fazer arte sacra da cidade de São João del-Rei.
Art. 2º – O reconhecimento de que trata esta lei, conforme dispõe o art. 2º da Lei nº 24.219, de 2022, tem por objetivo valorizar bens, expressões e manifestações culturais dos diferentes grupos formadores da sociedade mineira.
Art. 3º – Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.
Sala das Reuniões, 1º de abril de 2025.
Professor Cleiton (PV), presidente da Comissão de Cultura.
Justificação: A cidade de São João del-Rei, assim como praticamente todas as outras localidades do estado de Minas Gerais e mesmo do Brasil, nasceu ao redor da religiosidade católica dos colonos portugueses. A povoação que se formou a partir da descoberta dos minerais preciosos nas encostas das serras e morros desde seu início se centrou a redor de uma capela, rústica e tosca, onde essa religiosidade pudesse ser expressa. Mesmo durante os conflitos da Guerra dos Emboabas, a manutenção deste templo era prioridade pela população local. Também era importante, para melhor expressar essa religiosidade, o embelezamento do templo e do culto católico. Assim, podemos ter a certeza de que, mesmo nos primórdios da vila de São João del-Rei, havia uma preocupação com o belo dentro dos templos, mais do que em quaisquer outros edifícios da vila. Era imprescindível, portanto, a presença de artífices que dessem vida a esse belo buscado pelos fiéis católicos, apesar de o tempo ter apagado seus nomes.
Nestes primeiros anos, podemos indicar a construção da igreja de Nossa Senhora do Rosário, concluída em 1719, e da igreja matriz de Nossa Senhora do Pilar (atual Catedral Basílica), a partir de 1721; além dos templos dos povoados que hoje formam distritos do município de São João del-Rei, como as capelas de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno (1722), de São Francisco do Onça (Emboabas, 1727), de São Gonçalo do Amarante do Caburu (1734) e de São Miguel do Cajuru (antes de 1720). Tais construções foram impulsionadas principalmente pelas irmandades religiosas, que se fizeram presentes na vila desde seu início, como forma de organização religiosa. Essas irmandades contrataram artistas, arquitetos e outros artífices para dar vida aos seus templos e decorá-los tão bem como pudessem.
A consolidação da vila de São João del-Rei como importante ponto econômico e social de Minas Gerais mesmo após o rush inicial da mineração a partir da segunda metade do século XVIII trouxe a proliferação de mais irmandades, que, por sua vez, procuraram construir seus espaços de culto, intensificando o cenário da arte voltada para a religiosidade católica. As poderosas e prósperas Ordens Terceiras de Nossa Senhora do Carmo (1746) e de São Francisco de Assis (1749) logo iniciaram a construção de seus templos, que hoje são importantes exemplares da arte sacra colonial brasileira, e a vila também viu a construção das igrejas de Nossa Senhora das Mercês (antes de 1750) e de São Gonçalo Garcia (década de 1770). Também é importante notar a construção das capelas pela cidade, como a do Senhor do Bonfim (1769), do Senhor de Matosinhos (1772), de Santo Antônio de Pádua (antes de 1765), e do Senhor do Monte (antes de 1783), que, ainda que não tenham sido impulsionadas por irmandades, foram edificadas a partir da religiosidade e devoção populares.
Foi também o período de renovação estilística dos templos já existentes, como a igreja Matriz e de Nossa Senhora do Rosário, que, com a prosperidade de suas instituições mantenedoras, procuraram se adequar aos estilos artísticos vigentes. Todo este movimento criou grande necessidade do trabalho e da presença dos artistas sacros na vila, que pudessem realizar a construção dos templos, o entalhe dos altares e retábulos, a pintura pictórica do interior das igrejas, o douramento da talha, a escultura das imagens sacras, a produção de acessórios e vestimentas para tais imagens, sua policromia, a produção de mobiliário próprio, de objetos litúrgicos e processionais etc. Parte desses artífices foram contratados fora da vila e mesmo do território brasileiro, notavelmente o arquiteto português Francisco de Lima Cerqueira, que trabalhou na construção das igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo. Mas a grande movimentação da produção de arte sacra implicou na criação de artífices locais e regionais, pessoas nascidas em São João del-Rei e na região, que aprenderam os diversos ofícios nos ateliês dos artífices já experientes, que transmitiam seu conhecimento e permitiam a criação de identidades artísticas locais e individuais.
Neste período, já aparecem mais nomes conhecidos à historiografia, tais como o escultor e entalhador Valentim Correa Paes, o pintor Venâncio José do Espírito Santo, o entalhador Luiz Pinheiro de Souza, o entalhador e pintor Joaquim José da Natividade e o pintor Manoel Vitor de Jesus, ativos na região durante a segunda metade do século XVIII e início do século XIX. Outros artistas ainda permanecem no anonimato, mas estudos acadêmicos contemporâneos permitem reconhecer a importância de seus trabalhos, desvelar seus estilos artísticos, seus períodos e áreas de atuação, tais como o “Mestre do Cajuru”, o “Mestre dos Anjos Sorridentes” e o “Mestre da Igreja de São Francisco de Assis”, que trabalharam na escultura e pintura que certamente foram fruto dessa tradição local de arte sacra.
O século XIX trouxe consigo uma nova fase na arte sacra em São João Del-Rei. Tendo a vila mantido sua importância no cenário mineiro, foi elevada a cidade no ano de 1838. A relativa proximidade com a corte instalada na cidade do Rio de Janeiro permitiu que novas ideias e estilos artísticos chegassem rapidamente à cidade, movimentando ainda mais o contexto da arte sacra. Neste século temos principalmente a conclusão das igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo, as completas remodelações da igreja de Nossa Senhora das Mercês e da Capela de Santo Antônio de Pádua, e a reforma e ampliação da igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, que seguiram estilos, formulações e métodos inovadores para o período, condizentes com o que era tendência nos grandes centros urbanos, mas sem perder a identidade local formada anteriormente.
Um dos nomes de destaque deste período é o artista multifacetado Joaquim Francisco de Assis Pereira, escultor, entalhador e prateiro, que realizou importantes trabalhos para as igrejas de São João del-Rei e da região, notavelmente grande parte da conclusão interna da igreja de Nossa Senhora do Carmo. O artista é exemplo da cultura de aprendizagem local, tendo passado o conhecimento de vários ofícios a seus aprendizes, inclusive seus filhos, que, por sua vez, os transmitiram a outras pessoas.
São João del-Rei chega ao século XX sendo um dos principais centros urbanos de Minas Gerais, tendo se desenvolvido econômica e politicamente em contraste a outras cidades coloniais que passaram por um momento de estagnação. O crescimento populacional da cidade implicou na construção de novas igrejas nos novos bairros que se formavam, e a vitalidade das instituições religiosas, especialmente a das irmandades, manteve a cultura local da arte sacra. No início do século é importante notar a conclusão da Igreja de São Gonçalo Garcia em 1903 e a construção da nova Capela de Nossa Senhora das Dores da Santa Casa de Misericórdia, em 1918, no inovador estilo neogótico.
A tradição da arte sacra perpassa pelo século XX e chega até nossos dias. A cidade de São João del-Rei abriga um grande número de artífices que se especializam na produção artística voltada para as igrejas. É notável a presença de diversos escultores, pintores, entalhadores, prateiros, ourives, costureiros etc. que dedicam grande parte de suas obras para incrementar o culto e prover as igrejas da cidade. Tais artistas se especializam no entendimento dos estilos artísticos de cada templo e neles inserem suas obras de maneira tão integrada ao conjunto que, muitas vezes, aos olhos de visitantes e turistas, tais obras são entendidas como sendo do período colonial/imperial, enriquecendo a beleza dos templos e pouco afetando a sua originalidade artística.
Estes artistas muitas vezes possuem formações acadêmicas que dão sustento ao seu ofício, mas a essência de seu trabalho continua sendo a aprendizagem e a transmissão mútua de experiência entre eles, criando um contexto e um cenário propícios para o desenvolvimento de uma arte sacra local, nos quais cada vez mais pessoas se inserem, buscando aprender e dar continuidade à tradição.
No advento das ideias de preservação do patrimônio histórico, principalmente após a criação e desenvolvimento do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) na década de 1940, surgiu mais um ofício atrelado à produção de arte sacra, o de restaurador, essencial para que a tradição artística constituída nos séculos XVIII e XIX não se perdesse. Assim, muitos destes artífices que já produziam novas obras para as igrejas procuraram se especializar, a partir de formação acadêmica, mas principalmente pela experiência e contato com a arte local, no ofício de restaurador de esculturas, pinturas e talhas presentes nos templos são-joanenses.
O renome de muitos destes artistas e restauradores são-joanenses ultrapassa os limites da cidade e da região, chegando a muitas partes do Brasil. Além de abastecerem as igrejas locais, são procurados para a produção de imagens e seus acessórios, mobiliário, objetos etc. que sejam específicas para as diversas igrejas e locais pelo território brasileiro, além de serem procurados também para a restauração de imagens ou mesmo de igrejas inteiras, devido à especialização e peculiaridade desses artistas.
O desenvolvimento deste cenário também criou uma produção de imagens e objetos litúrgicos para “pronta entrega”, com a presença de diversos estabelecimentos pela cidade que fornecem tais obras para pessoas que vêm à cidade, muitas vezes especificamente para isso, criando um comércio atrelado a um turismo cultural.
Este cenário atual, portanto, é fruto de uma tradição que foi mantida ininterruptamente desde o início da povoação de São João del-Rei, nos primeiros anos do século XVIII, e continua com uma força e vitalidade peculiar à cidade, que se destaca no contexto estadual e até mesmo nacional. A exploração cultural desta tradição pelo poder público pode, portanto, trazer grandes benefícios à sua manutenção e desenvolvimento, intensificando o entendimento patrimonial e artístico da população local e o movimento turístico da cidade, como já acontece de forma orgânica na atualidade.
– Publicado, vai o projeto às Comissões de Justiça e de Cultura para parecer, nos termos do art. 188, c/c o art. 102, do Regimento Interno.