PL PROJETO DE LEI 3228/2025
Projeto de Lei nº 3.228/2025
Da Política Estadual de Cuidado.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – Fica instituída a Política Estadual de Cuidados, destinada a garantir o direito ao cuidado, por meio da promoção da corresponsabilização social e entre homens e mulheres pela provisão de cuidados, consideradas as múltiplas desigualdades.
Art. 2º – Todas as pessoas têm direito ao cuidado.
Parágrafo único – O direito ao cuidado de que trata o caput deste artigo compreende o direito a ser cuidado, a cuidar e ao autocuidado.
Art. 3º – A Política Estadual de Cuidados é dever do Estado, em corresponsabilidade com as famílias, o setor privado e a sociedade civil.
Parágrafo único – O Estado poderá instituir as suas políticas, em conformidade com o disposto nesta lei.
Art. 4º – A Política Estadual de Cuidados será implementada, de forma transversal e intersetorial, por meio do Plano Estadual de Cuidados.
Capítulo I
DOS OBJETIVOS
Art. 5º – São objetivos da Política Estadual de Cuidados:
I – garantir o direito ao cuidado, de forma gradual e progressiva, sob a perspectiva integral e integrada de políticas públicas que reconheçam a interdependência da relação entre quem cuida e quem é cuidado;
II – promover políticas públicas que garantam o acesso ao cuidado com qualidade para quem cuida e para quem é cuidado;
III – promover a implementação de ações pelo setor público que possibilitem a compatibilização entre o trabalho remunerado, as necessidades de cuidado e as responsabilidades familiares relacionadas ao cuidado;
IV – incentivar a implementação de ações do setor privado e da sociedade civil, de forma a possibilitar a compatibilização entre o trabalho remunerado, as necessidades de cuidado e as responsabilidades familiares de cuidado;
V – promover o trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores remunerados do cuidado, de maneira a enfrentar a precarização e a exploração do trabalho;
VI – promover o reconhecimento, a redução e a redistribuição do trabalho não remunerado do cuidado, realizado primordialmente pelas mulheres;
VII – promover o enfrentamento das múltiplas desigualdades estruturais no acesso ao direito ao cuidado, de modo a reconhecer a diversidade de quem cuida e de quem é cuidado; e
VIII – promover a mudança cultural relacionada à organização social do trabalho de cuidado.
Capítulo II
DAS DEFINIÇÕES
Art. 6º – Para fins do disposto nesta lei, considera-se:
I – cuidado: trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação e à reprodução diária da vida humana, da força de trabalho, da sociedade e da economia e à garantia do bem-estar de todas as pessoas;
II – organização social do cuidado: forma como o Estado, as famílias, o setor privado e a sociedade civil se inter-relacionam para prover cuidado e forma pela qual os domicílios e os seus membros dele se beneficiam;
III – corresponsabilidade social pelos cuidados: compartilhamento de responsabilidades pelos atores sociais que possuem o dever ou a capacidade de prover cuidado, incluídos o Estado, as famílias, o setor privado e a sociedade civil;
IV – corresponsabilidade entre homens e mulheres pelos cuidados: compartilhamento de responsabilidades pelo cuidado, de forma equitativa, entre mulheres e homens;
V – múltiplas desigualdades: desigualdades sociais estruturadas em diversas dimensões de exclusão e de subordinação com base em critérios de classe, sexo, raça, etnia, idade, território e deficiência que operam na estruturação e na reprodução das desigualdades sociais e da experiência de vida das pessoas e dos grupos sociais;
VI – universalismo progressivo e sensível às diferenças: efetivação da garantia do direito ao cuidado, de forma gradual e progressiva, consideradas as desigualdades estruturais; e
VII – trabalhadoras e trabalhadores não remunerados do cuidado: pessoas que exercem o trabalho de cuidado nos domicílios, sem vínculo empregatício e sem obtenção de remuneração.
Capítulo III
DOS PRINCÍPIOS
Art. 7º – São princípios da Política Estadual de Cuidados:
I – respeito à dignidade e aos direitos humanos de quem recebe cuidado e de quem cuida;
II – universalismo progressivo e sensível às diferenças;
III – equidade e não discriminação;
IV – promoção da autonomia e da independência das pessoas;
V – corresponsabilidade social entre homens e mulheres;
VI – antirracismo;
VII – anticapacitismo;
VIII – anti-idadismo;
IX – interdependência entre as pessoas e entre quem cuida e quem é cuidado;
X – direito à convivência familiar e comunitária;
XI – parentalidade positiva;
XII – valorização e respeito à vida, à cidadania, às habilidades e aos interesses das pessoas; e
XIII – promoção do cuidado responsivo.
Capítulo IV
DAS DIRETRIZES
Art. 8º – São diretrizes da Política Estadual de Cuidados:
I – a integralidade do cuidado;
II – a transversalidade, a intersetorialidade, a consideração das múltiplas desigualdades e a interculturalidade das políticas públicas de cuidados;
III – a garantia da participação e do controle social das políticas públicas de cuidados na formulação, na implementação e no acompanhamento de suas ações, programas e projetos;
IV – a atuação permanente, integrada e articulada das políticas públicas de saúde, assistência social, direitos humanos, educação, trabalho e renda, esporte, lazer, cultura, mobilidade, previdência social e demais políticas públicas que possibilitem o acesso ao cuidado ao longo da vida;
V – a simultaneidade na oferta dos serviços para quem cuida e para quem é cuidado, reconhecida a relação de interdependência entre ambos;
VI – a acessibilidade em todas as dimensões;
VII – a territorialização e a descentralização dos serviços públicos ofertados, considerados os interesses de quem cuida e de quem é cuidado;
VIII – a articulação intermunicipal;
IX – a formação continuada e permanente nos temas de cuidados para:
a) servidoras e servidores estaduais e municipais que atuem na gestão e na implementação de políticas públicas;
b) prestadores de serviços que atuem na rede de serviços públicos ou privados; e
c) trabalhadoras e trabalhadores do cuidado remunerados e não remunerados, incluídos os familiares e comunitários; e
X – o reconhecimento e a valorização do trabalho de quem cuida e do cuidado como direito, com a promoção da corresponsabilização social e entre homens e mulheres, respeitada a diversidade cultural dos povos.
Parágrafo único – Para fins do disposto no inciso I do caput deste artigo, a integralidade do cuidado compreende o atendimento das demandas e das necessidades de cuidado das pessoas em todas as dimensões, como receptoras e provedoras do cuidado, considerados os contextos social, econômico, familiar, territorial e cultural em que estão inseridas.
Capítulo V
DO PÚBLICO PRIORITÁRIO
Art. 9º – A Política Estadual de Cuidados terá como público prioritário:
I – crianças e adolescentes, com atenção especial à primeira infância;
II – pessoas idosas que necessitem de assistência, de apoio ou de auxílio para executar as atividades básicas e instrumentais da vida diária;
III – pessoas com deficiência que necessitem de assistência, de apoio ou de auxílio para executar as atividades básicas e instrumentais da vida diária;
IV – trabalhadoras e trabalhadores remunerados do cuidado; e
V – trabalhadoras e trabalhadores não remunerados do cuidado.
§ 1º – As múltiplas desigualdades serão consideradas para definir o público prioritário da Política Estadual de Cuidados.
§ 2º – A ampliação do público prioritário da Política Estadual de Cuidados poderá ser realizada de forma progressiva, consideradas as necessidades de apoio e de auxílio, as demandas das trabalhadoras e dos trabalhadores remunerados e não remunerados do cuidado e as novas demandas relativas ao cuidado.
Capítulo VI
DO PLANO ESTADUAL DE CUIDADOS
Art. 10 – O Poder Executivo Estadual elaborará o Plano Estadual de Cuidados, na forma prevista em regulamento, no qual serão estabelecidos ações, metas, indicadores, instrumentos, período de vigência e de revisão, órgãos e entidades responsáveis.
§ 1º – O Plano Estadual de Cuidados buscará a consecução de seus objetivos por meio de ações intersetoriais nas áreas de assistência social, saúde, educação, trabalho e renda, cultura, esportes, mobilidade, previdência social, direitos humanos, políticas para as mulheres, políticas para a igualdade racial, políticas para os povos indígenas e para as comunidades tradicionais, desenvolvimento agrário e agricultura familiar, entre outras.
§ 2º – O Plano Estadual de Cuidados disporá, no mínimo, sobre:
I – garantia de direitos e promoção de políticas públicas para a pessoa que necessita de cuidados e para as trabalhadoras e os trabalhadores não remunerados do cuidado, incluídos a criação, a ampliação, a qualificação e a integração de serviços de cuidado, os benefícios, a regulamentação e a fiscalização de serviços públicos e privados;
II – estruturação de iniciativas de formação e de qualificação para as trabalhadoras e os trabalhadores não remunerados do cuidado, inclusive estratégias de apoio ao exercício da parentalidade positiva;
III – fomento à adoção, pelos setores público e privado, de medidas que promovam a compatibilização entre o trabalho remunerado e as necessidades pessoais e familiares de cuidados;
IV – promoção do trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores remunerados do cuidado, incluídos a garantia de direitos trabalhistas e de proteção social, o enfrentamento da precarização do trabalho e a estruturação de programas de formação e de qualificação profissional para essas trabalhadoras e esses trabalhadores;
V – estruturação de medidas para redução da sobrecarga de trabalho não remunerado que recai sobre as famílias, em especial sobre as mulheres, com a promoção da corresponsabilidade social e entre homens e mulheres;
VI – políticas públicas para a transformação cultural, relativas à divisão racial, social e entre homens e mulheres do trabalho, para o reconhecimento e a valorização de quem cuida e do cuidado como trabalho e direito, com a promoção da corresponsabilização social e entre homens e mulheres;
VII – estruturação de iniciativas de formação destinadas a servidoras e servidores públicos, a prestadores de serviços de cuidados e à sociedade; e
VIII – aprimoramento contínuo de dados provenientes de estatísticas e de registros administrativos sobre o tema para subsidiar a gestão da Política Estadual de Cuidados e para reconhecer e mensurar o valor econômico e social do trabalho de cuidado não remunerado.
§ 3º – O Plano Estadual de Cuidados será implementado por meio da atuação intersetorial, da articulação intermunicipal e da integração entre as redes pública e privada de serviços, programas, projetos, ações, benefícios e equipamentos destinados à garantia do direito ao cuidado.
Art. 11 – O Estado buscará a adesão dos Municípios à abordagem multissetorial e intersetorial no atendimento dos direitos das pessoas que recebem e exercem o cuidado e oferecerá assistência técnica na elaboração de planos municipais de cuidados que articulem os diferentes setores.
Capítulo VII
DA ESTRUTURA DE GOVERNANÇA
Art. 12 – O Poder Executivo estadual disporá sobre a estrutura de governança do Plano Estadual de Cuidados, suas competências, seu funcionamento e sua composição, por meio de regulamento, observada a intersetorialidade, a articulação, a participação e o controle social.
§ 1º – O Estado e os Municípios poderão celebrar convênios ou instrumentos congêneres com entidades públicas e privadas, sem fins lucrativos, para o desenvolvimento e a execução de projetos que beneficiem as pessoas que precisam de cuidado.
§ 2º – As entidades públicas e privadas deverão atuar em estrita observância aos princípios, às diretrizes e aos objetivos que orientam a Política Estadual de Cuidados.
Capítulo VIII
DO FINANCIAMENTO
Art. 13 – A Política Estadual de Cuidados será custeada por:
I – dotações orçamentárias do orçamento geral do Estado consignadas aos órgãos e às entidades da administração pública estadual participantes do Plano Estadual de Cuidados, observada a disponibilidade financeira e orçamentária;
II – fontes de recursos destinadas por órgãos e entidades da administração pública estadual observada a disponibilidade financeira e orçamentária;
III – recursos provenientes de doações, de qualquer natureza, feitas por pessoas físicas ou jurídicas, do País ou do exterior; e
IV – outras fontes de recursos nacionais ou internacionais, compatíveis com o disposto na legislação.
Art. 14 – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Sala das Reuniões, 11 de janeiro de 2025.
Lucas Lasmar (Rede), vice-líder do Bloco Democracia e Luta.
Justificação: O envelhecimento da população é um fenômeno mundial que tem trazido transformações relevantes em diferentes aspectos da vida social, inclusive modificações quanto à forma pela qual são cuidadas as pessoas com comprometimentos funcionais que restringem sua autonomia e independência.
Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que, em 2050, haverá dois bilhões de pessoas com 60 anos ou mais no mundo, sendo que oitenta por cento estarão nos países em desenvolvimento, e que o Brasil será o sexto país do mundo em número de idosos. É consenso, entre especialistas e acadêmicos, a falta de políticas públicas voltadas para o cuidado no Brasil, tanto para o cuidado de crianças, quanto de pessoas idosas ou de pessoas com deficiência.
Com efeito, cuidados de longa duração para pessoas em situação de dependência para o exercício de atividades da vida diária se mostram essenciais para o bem-estar de quem deles necessita. Tendo em vista seu caráter interdisciplinar, as ações que compõem o cuidado para pessoas dependentes perpassam diversos campos do conhecimento e políticas públicas, com destaque para a assistência social e para a área da saúde.
Como já mencionado, uma política de cuidados tem como destinatários não apenas as pessoas idosas, mas também crianças, adolescentes, jovens, adultos e pessoas com deficiência, ou de uma forma mais abrangente, a pessoa de qualquer faixa etária que, em razão de sua condição de dependência, necessita de cuidados.
A atenção aos cuidados parte do entendimento de que assegurar os direitos dos indivíduos que demandam cuidado não deve resultar na perda de direitos daqueles que exercem o cuidado. Isto é, a proteção legal aos cuidados ingressa no arcabouço jurídico com o propósito de ampliar e qualificar as políticas públicas de proteção, abrangendo tanto o direito de ser cuidado quanto o direito de quem cuida.
Os debates a respeito de uma política pública de cuidado não se limitam ao cenário estadual e nacional e se realizam, também, na esfera de importantes organizações internacionais de proteção dos direitos humanos, tais como a Organização dos Estados Americanos – OEA – e a Organização Internacional do Trabalho – OIT –, das quais o Estado brasileiro é membro. No âmbito da OEA, encontra-se em processamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), Opinião Consultiva formulada pela Argentina, cujo objeto consiste na definição do conteúdo e do alcance do direito ao cuidado e das obrigações correspondentes do Estado, de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH – e outros instrumentos internacionais de direitos humanos. (Pedido de parecer consultivo à Corte Interamericana de Direitos Humanos: o conteúdo e o escopo do cuidado como direito humano e sua inter-relação com outros direitos. Disponível emhttps://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/soc_2_2023_pt.pdf. Acesso em: 10 de jan. 2025.).
O tema ganhou ainda mais relevância com a disseminação do conceito de “Crise do Cuidado”, especialmente em países onde as projeções indicam aumento da expectativa de vida e envelhecimento populacional, fenômenos que, em conjunto, resultam em uma crescente proporção de pessoas idosas e com doenças relacionadas ao envelhecimento, ampliando a demanda por cuidados de longo prazo. Vale frisar que essa situação não se limita aos países emergentes, pois mesmo as nações consideradas desenvolvidas têm enfrentado as consequências da insuficiência de políticas públicas dedicadas aos cuidados.
Para atender parte dessa demanda em todo o mundo, são dedicadas, diariamente, 16,4 bilhões de horas ao trabalho de cuidado não remunerado, segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT. De acordo com o relatório “Trabalho de cuidado para o futuro do trabalho decente”, da OIT, há uma iminente crise na prestação de serviços de cuidados, cujos déficits atuais, caso não sejam adequadamente abordados, tornarão grave e insustentável a crise global de cuidado e aumentarão as desigualdades de gênero no trabalho. (Organização Internacional do Trabalho (OIT). Prestação de cuidados: trabalho e profissões para o futuro do trabalho digno. Genebra: OIT, 2019, p. xxxiv. Disponível em: https://www.ilo.org/sites/default/files/wcmsp5/groups/public/@europe/@ro-geneva/@ilo-lisbon/ documents/publication/wcms_767811.pdf. Acesso em: 08 jan. 2025.).
Em síntese, o denominador comum entre esses segmentos é a necessidade de apoio para o exercício de atividades básicas da vida diária, respeitadas as características e peculiaridades de cada público-alvo. Em relação às pessoas idosas, é importante destacar que nem todas desenvolverão condições que levam a limitações sociais, cognitivas ou funcionais que demandem auxílio de terceiros. No entanto, é notório que, a partir dos 65 anos, aumentam as chances de o idoso desenvolver restrições funcionais que impactam na sua autonomia e independência, situação que demanda maior atenção à melhoria ou manutenção de suas condições de saúde, autocuidado e qualidade de vida. Mudanças no perfil sociodemográfico do país, a ampliação da participação feminina no mundo do trabalho, assim como alterações nas configurações familiares não mais permitem que o modelo familista de cuidado, até então prevalente e que geralmente impunha à mulher a responsabilidade pelo cuidado de pessoas dependentes, mostre-se sustentável para enfrentar o aumento do número de pessoas em situação de dependência, que tende a se expandir nos anos vindouros.
Nesse sentido, é de extrema importância que este Parlamento traga para o debate público e discuta em profundidade a configuração de uma política de cuidados, que venha a atender os anseios das pessoas e famílias que já se deparam com essa realidade, bem como apresente estrutura para atender à demanda crescente por esse tipo de apoio, assim como medidas legais e operacionais de apoio ao cuidador.
Dessa forma, a apresentação do presente Projeto alinha-se à recente tendência global de promover políticas públicas voltadas para os cuidados.
Assim, convicto da qualidade e da importância do projeto de lei que ora apresentamos, contamos com o apoio dos nobres Pares para sua aprovação.
– Semelhante proposição foi apresentada anteriormente pela deputada Lud Falcão. Anexe-se ao Projeto de Lei nº 715/2023, nos termos do § 2º do art. 173 do Regimento Interno.