PL PROJETO DE LEI 1804/2023
Projeto de Lei nº 1.804/2023
Dispõe sobre diretrizes de atenção à crise mental no Estado de Minas Gerais, bem como sobre o matriciamento das equipes que assistem os leitos de retaguarda em hospital geral sem enfermaria especializada e dá outras providências.
A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – As vagas de hospitalidade integral dos Caps III, Caps III AD e Caps IV, bem como os das enfermarias especializadas em saúde mental em hospitais gerais e dos hospitais psiquiátricos devem ser reguladas pela autoridade sanitária e médicos que trabalham no sistema estadual de regulação – SUSFácil – do Estado de Minas Gerais na urgência e emergência, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais.
§ 1º – Por hospitalidade integral entende-se aquela modalidade de atendimento que envolve para sua caracterização:
I – a permanência do usuário do sistema de saúde 24 (vinte e quatro) horas por dia dentro de um dos equipamentos a que faz referência o art. 1º;
II – o provimento integral das medidas terapêuticas e de cuidados de vida diária básicos e adequados (alimentação, abrigo etc.) ao usuário;
III – pelo menos um atendimento médico que indique ou que respalde uma indicação de um profissional de nível superior dessa modalidade de atendimento.
§ 2º – Não deve haver distinções na regulação dessas vagas de hospitalidade integral em relação às demais vagas da saúde como um todo, exceto no que diz respeito à matéria da regulação propriamente dita (classificação de risco, priorização dos usuários etc.).
Art. 2º – Os usuários assistidos em vagas de hospitalidade integral de retaguarda em hospital geral por condições primordialmente mentais não devem permanecer nestas vagas por período maior do que 48 horas, contadas a partir de sua admissão, caso essas vagas não estejam em enfermarias especializadas em saúde mental.
§ 1º – Em casos em que a principal hipótese diagnóstica for de catatonia primária ou secundária, o disposto neste artigo não se aplica.
§ 2º – Nos casos de catatonia primária ou secundária os usuários deverão ser transferidos o quanto antes para serviços que disponham da estrutura necessária para fazer frente a essa condição.
§ 3º – Para a contagem das 48 (quarenta e oito) horas a que se refere caput do artigo é necessário observar o seguinte:
I – a admissão se inicia no momento em que o usuário é acolhido no serviço em que as vagas de hospitalidade integral de retaguarda de hospital geral sem enfermaria especializada em saúde mental são habilitadas.
II – caso o usuário receba alta do hospital, as horas permanecem ativas e só se expiram após 30 (trinta) horas, contadas a partir do primeiro acolhimento no hospital em que os leitos de retaguarda de hospital geral sem enfermaria especializada em saúde mental são habilitados.
III – caso o usuário retorne dentro dessas 30 horas ao referido hospital em que as vagas de hospitalidade integral sem enfermaria especializada em saúde mental são habilitados (ou a outro que o valha), as horas que permaneceu anteriormente são contabilizadas e o tempo, portanto, é contado a partir delas.
§ 4º – Enquanto permanecerem nessas vagas, as equipes assistentes das vagas de hospitalidade integral devem ser matriciadas por equipe multiprofissional especializada em saúde mental, que deve contar com, no mínimo:
I – um (1) médico psiquiatra;
II – um (1) enfermeiro de saúde mental.
§ 5º – O matriciamento do § 4º deste artigo deve respeitar as resoluções cabíveis dos respectivos conselhos de classes dos profissionais envolvidos em sua execução, quais sejam: Conselho Federal de Medicina e Conselho Federal de Enfermagem.
§ 6º – O primeiro contato das equipes assistentes das vagas de hospitalidade integral em hospital geral com a equipe responsável por seu matriciamento não deve exceder o período de 4 (quatro) horas, contadas a partir da admissão do usuário.
§ 7º – A equipe de matriciamento, em sua constituição mínima disposta no § 4º deste artigo, não deverá assistir mais do que 10 (dez) usuários simultaneamente.
Art. 3º – A autoridade sanitária do Estado de Minas Gerais se encarregará de executar o previsto no art. 2ª desta Lei.
§ 1º – Para a execução pela autoridade sanitária do Estado de Minas Gerais do previsto no art. 2ª é permitido o uso de tecnologias da informação (matriciamento via teleinterconsulta), contanto que respeitado os ditames éticos de seu uso e as resoluções pertinentes dos conselhos de classes dos profissionais envolvidos no matriciamento.
§ 2º – A execução dessa lei deverá observar estritamente o disposto no art. 2º, § 5º, desta Lei, criando serviço específico de matriciamento estadual, caso necessário.
Art. 4º – Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.
Sala das Reuniões, 30 de novembro de 2023.
Lucas Lasmar, vice-líder do Bloco Democracia e Luta (Rede).
Justificação: De acordo com denúncia do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais – Sinmed-MG – 1, crescem as admissões de usuários nos chamados leitos de retaguarda em hospitais gerais por conta de condições primordialmente mentais (capítulo F do CID-10). Os usuários que acessam esses leitos estão passando por graves crises mentais, uma vez que só são encaminhados a esses leitos aqueles que carecem de assistência 24h/dia, impossível de ser realizada na maior parte dos serviços de saúde mental disponíveis em Minas Gerais (Unidades Básicas de Saúde, bem como Centros de Atenção Psicossociais, os Caps, I e II), pois que estes só abrem por até 12h/dia. Isso não seria um problema, se os leitos de retaguarda em hospitais gerais fossem adequados ao atendimento à crise mental. Contudo, esse não é o caso. Como consequência, esses usuários, ainda segundo a referida denúncia, estão sendo submetidos a condições terapêuticas inadequadas às particularidades de suas pessoas e de suas condições mentais, ferindo os princípios preconizados pela política brasileira de saúde mental, pela Reforma Psiquiátrica Brasileira e pelas melhores práticas adotadas internacionalmente.
A política de saúde mental nacional, em linha com as melhores práticas internacionais, adotou os princípios de cuidado desenvolvidos a partir do movimento global de desinstitucionalização, aqui no país conhecido como Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Dentre esses princípios, destacam-se o cuidado em liberdade, com veemente recusa à exclusão social daqueles usuários em sofrimento mental; o cuidado ampliado, com o reconhecimento da importância de que uma verdadeira recuperação no campo da saúde mental envolve não apenas a libertação dos sintomas, mas a busca pela realização de uma vida que valha a pena ser vivida por aqueles que sofrem mentalmente; além de um ambiente de cuidado que possa estar o mais próximo possível de onde os usuários vivem e que conte, para que o último ponto possa ser melhor alcançado, com equipes ampliadas, em que existam não apenas médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais etc., mas também pares (usuários que estão em estágio mais adiantado da recuperação e que são capazes de acolher e aconselhar outros usuários), artistas, membros da sociedade interessados em auxiliar com seus saberes próprios etc.
Nessa linha, muitas medidas coercitivas foram abolidas e outras, desencorajadas. Notoriamente, a medida de contenção mecânica (procedimento que envolve prender os usuários agitados ou agressivos ao leito por meio de amarras) foi densamente regulada, tanto por legislação nacional quanto estadual 2,3. A Organização Mundial da Saúde – OMS – recomenda, contudo, que os serviços busquem, ao máximo, adotar medidas para prevenir o uso da contenção mecânica 4, o que é alcançado, segundo as melhores evidências disponíveis 5,6, por meio de adequações estruturais e de treinamento de pessoal. Além disso, o atendimento à crise, segundo referências de instituições respeitadíssimas 7, deve seguir o princípio de menor invasividade: medidas comportamentais (descalonamento verbal, mudança de ambiente, redução de estressores etc.) ganham precedência sobre medidas químicas (medicações), que ganham precedência sobre medidas mecânicas (contenção mecânica).
Infelizmente, as vagas de retaguarda em hospitais gerais estão em completo desacordo com o que vem sendo adotado mundo afora e com o que, historicamente, a política de saúde mental brasileira e o Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira preconizam, bem como estão em desacordo com as recomendações da OMS e das melhores evidências disponíveis ao atendimento à crise mental. Ainda segundo a denúncia supramencionada, os usuários da saúde mental encaminhados para esses leitos não estão recebendo o devido cuidado. O motivo: ambientes inadequados e pessoal destreinado para o atendimento à crise mental, decorrentes de aspectos normativos equivocados da política nacional de saúde mental (o que será mais bem-visto adiante por meio da análise da portaria nº 148/2012, do Ministério da Saúde 8).
A portaria nº 148/2012 é aquela que “define as normas de funcionamento e habilitação do Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, do Componente Hospitalar da Rede de Atenção Psicossocial, e institui incentivos financeiros de investimento e de custeio”. Infelizmente, conforme se verá, ela conta com alguns equívocos que levam aos problemas supramencionados.
No seu capítulo I, seção II, art. 6º, a portaria nº 148/2012 determina que, somente “no caso de mais de 10 (dez) leitos implantados”, “o Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas funcionará em enfermaria especializada destinada ao atendimento de pessoas em sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas”. Quando são menos de 10 (dez) leitos implantados, não há, portanto, necessidade de enfermaria especializada. Isso não é adequado, pois que os usuários da saúde mental que necessitam desses leitos são costumeiramente agitados, desorganizados, delirantes etc., logo precisam de um ambiente especializado. Do contrário, o risco de incidentes gravosos à saúde dos usuários assistidos é muito grande, uma vez que, além das equipes serem destreinadas, o ambiente inadequado as obriga a adotar medidas heroicas para preservar os pacientes circunjacentes, muitas vezes instáveis clinicamente, invadidos por sondas, cateteres, entre outros.
Cabe mencionar que, em Minas Gerais, segundo dados da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais – SES-MG – 9, a maioria (mais de 70%) dos leitos de retaguarda em hospitais gerais estão em hospitais de pequeno porte, portanto, desobrigados pela portaria a criarem enfermarias especializadas.
No seu capítulo I, seção III, art. 7º, a portaria nº 148/2012 determina que apenas “quando para o cuidado de 21 a 30 leitos, a equipe técnica multiprofissional mínima” contará obrigatoriamente “com 1 (um) médico psiquiatra responsável pelos leitos”. Isso não é adequado, pois além de o número ser excessivamente grande (normalmente, os médicos psiquiatras são responsáveis por 5 a 15 leitos, segundo a referida denúncia), a saúde mental, em seu braço médico (a psiquiatria), é uma área complexa da medicina, que carece de atenção especializada.
Logo, não se pode esperar que médicos clínicos despendam a mesma qualidade de atenção aos usuários da saúde mental do que médicos psiquiatras. A habilidade destes, nessa seara, supera em muito a dos clínicos e, portanto, impacta diretamente em resultados e custos. Nessa perspectiva, o citado dispositivo fere princípios constitucionais fundamentas, seja a integralidade e a equidade da assistência, seja a economicidade e a eficiência do investimento público.
Em suma, os leitos de retaguarda em hospital geral, por vícios da portaria nº 148/2012, são inadequados à atenção à crise mental, contrapondo-se aos princípios preconizados, historicamente, pela política brasileira de saúde mental, e também contrariando os princípios preconizados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira e pelas melhores práticas adotadas internacionalmente. Ademais, minam as principais medidas baseadas em evidências científicas para prevenir o uso da contenção mecânica, uma vez que tais leitos são assistidos por equipes destreinadas e não possuem, em sua grande maioria, nenhuma adequação ambiental à prática em saúde mental, em especial à atenção à crise mental.
Felizmente, existem hoje vários pontos de atenção adequados ao atendimento à crise mental na Rede de Atenção Psicossocial – Raps –, são estes: os Caps III, Caps III AD e Caps IV, bem como os leitos de retaguarda em hospital geral com adequações estruturais (as chamadas enfermarias especializadas). Destes, os mais abundantes (que mais existem em Minas Gerais) são os Caps III, Caps III AD e Caps IV.
Assim sendo, seria de se esperar que os usuários em crise mental fossem preferencialmente encaminhados aos referidos serviços. Entretanto, de modo completamente ininteligível, os leitos destes equipamentos não estão cadastrados no SUSFácil, portanto, estão desconectados da rede regulação em saúde da SES-MG.
Com isso, o acesso a eles é extremamente comprometido, levando a dificuldades desnecessárias e facilmente evitáveis na transferência dos usuários em crise mental.
Finalmente, para além da questão propriamente voltada à pasta da saúde, essa impossibilidade de acesso a equipamentos adequados ao atendimento à saúde mental, como os Caps III, Caps III AD e Caps IV, se caracteriza como um impasse à plena efetivação do pacto federativo, em especial no nível intermunicipal e entre estados e municípios, uma vez que estes equipamentos, conforme o estabelecido pela política nacional de saúde mental, só são cabíveis em cidades maiores do que 70.000 habitantes (Caps III e Caps III AD) ou do que 200.000 habitantes (Caps IV) 10. Portanto, caso a regulação em saúde mental do estado de Minas Gerais permaneça inalterada, a sua resultante infelizmente seguirá sendo a manutenção de “cidadãos de duas categorias”, isto é, daqueles que acessam equipamentos que ofertam hospitalidade integral (munícipes de cidades maiores) e daqueles que não (munícipes de cidades menores). Urge que assistência à saúde mental do SUS também se organize em rede, a exemplo das experiências bem-sucedidas em áreas como urgência-emergência e materno-infantil, com a devida pactuação de referências e contra referências entre os entes, para o cumprimento do dever estatal para com o direito desses usuários conforme expresso na Constituição Federal.
Desse modo, no intuito de contornar a precedência indevida que se vem dando aos leitos de retaguarda em hospital geral sobre os pontos de atenção verdadeiramente adequados ao atendimento à crise mental na Raps, bem como no intuito de melhorar a atenção, quando necessária, naqueles leitos, garantindo os direitos constitucionais dos usuários e otimizando os investimentos públicos na área, é mister aprovar a seguinte legislação ordinária.
Assim, solicito apoio dos nobres deputados para aprovação do presente projeto de lei.
– Publicado, vai o projeto às Comissões de Justiça e de Saúde para parecer, nos termos do art. 188, c/c o art. 102, do Regimento Interno.