Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da ALMG ouviu, em audiência pública, moradores e lideranças de Chapada do Norte
Representantes das comunidades quilombolas defenderam que acesso à água é garantia de preservação da sua história

Falta de água e de direitos seca futuro em Chapada do Norte

Audiência da Comissão dos Direitos da Mulher ouviu moradores em busca de estratégias por dias melhores no Jequitinhonha.

14/07/2022 - 18:30

A garantia do direito fundamental do acesso à água, não apenas para sobrevivência, mas para uma vida digna e produtiva, ainda é um sonho distante para boa parte dos moradores de Chapada do Norte.

E o pior, afeta mais drasticamente e seca o futuro da população negra, pobre e moradora das áreas rurais, sobretudo as mulheres, atributos que definem a maioria dos habitantes deste pequeno município do Vale do Jequitinhonha.

Consulte o resultado da reunião.

Dispostos a dar um primeiro passo para começar a mudar esse cenário, lideranças da região e dezenas de moradores participaram, nesta quinta-feira (14/7/22), de audiência pública realizada na cidade pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

O debate atendeu a requerimento da presidenta da comissão, deputada Ana Paula Siqueira (Rede), que também é coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa do Saneamento Básico e da Saúde Pública.

Comunidades quilombolas

Segundo dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Chapada do Norte é o município mineiro com maior percentual de população negra, entre 74,29% e 95,28% dos seus 15.189 habitantes conforme o distrito, dois terços vivendo na área rural.

O município, que já pertenceu à Capitania da Bahia e tem sua história ligada diretamente aos escravos fugitivos cujos descendentes ainda vivem em 14 comunidades quilombolas na região, sempre conviveu com o problema da escassez hídrica no semiárido. Mas a percepção geral é que ele piora a cada ano. 

Os rios e córregos que cortam a região ou secaram ou estão poluídos e com nível muito baixo, isso quando não ficam “cortados” (interrompidos) nos meses sem chuva. O resultado é a falta de água nas torneiras por meses e até anos. 

Prefeitura sobrecarregada

As políticas públicas que deveriam aliviar a situação, como a perfuração de poços artesianos ou a construção de pequenas barragens, quando são realizadas, recaem sobre a prefeitura, que não consegue dar conta da demanda.

Outra medida isolada da prefeitura é o envio emergencial de caminhões-pipa, mas nem sempre a água que chega é de boa qualidade e tem onde ser armazenada.

“São comunidades que carecem historicamente de falta de água. Para quem mora nos grandes centros urbanos, isso ainda parece uma realidade distante, mas não é. Precisamos ouvir e aprender com esse povo sofrido, mas acolhedor, para entender melhor como podemos atuar enquanto gestores de politicas públicas, inclusive no apoio à ciência”, apontou Ana Paula Siqueira.

A deputada lembrou que até na escassez hídrica as mulheres são mais penalizadas, já que muitos homens da região migram para trabalhar em lavouras de café e cana e as mulheres é que têm que dar conta dos cuidados da casa e dos filhos.

“São elas que carregam a lata cheia de água na cabeça por quilômetros. Essa água precisa chegar até elas sem precisar pedir, é um direito delas e uma obrigação do poder público”, criticou a parlamentar.

Sem explicações

E se sobram problemas, do outro lado faltam explicações do poder público estadual. Convidada para a audiência pública, a Copasa Serviços de Saneamento Integrado do Norte e Nordeste de Minas Gerais S/A, ou Copanor, avisou em cima que hora que não mandaria representante.

Trata-se de uma empresa pública subsidiária da Copasa criada pelo Governo de Minas para atender as regiões Norte e Nordeste do Estado com os serviços de abastecimento de água tratada, coleta e tratamento de esgotos sanitários.

Já a superintendente regional de Meio Ambiente (Supram) para o Jequitinhonha, órgão da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), Rita de Cássia Silva Braga e Braga, reconheceu o problema e prestou sua solidariedade aos presentes.

Diante do questionamento da deputada sobre as iniciativas em andamento ou planejadas para tentar mitigar o problema, se limitou a garantir que passaria as reclamações apresentadas ao comando da pasta e que iria apurar e fornecer as informações posteriormente à comissão.

Mineração e eucalipto são problemas antigos 

Além do clima hostil, a pesquisadora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Lauanda Lopes de Souza, apontou um vilão da seca que se disfarça de progresso e é velho conhecido dos ambientalistas.

“Minha avó já nasceu assim, carregando lata de água na cabeça, mas nunca é só a seca. Falar em escassez hídrica é falar dos impactos de grandes empreendimentos na região, como a monocultura do eucalipto no Alto Jequitinhonha, que impacta quem vive no Baixo e Médio Jequitinhonha também. Há ainda a mineração”, disse.

Esses empreendimentos secam nascentes, trazem consigo poluição e assoreamento de cursos d'água, além do uso abusivo da água e da construção de represas. 

Enquanto não se equaciona a balança entre economia e meio ambiente, segundo ela, é preciso retomar emergencialmente a construção de poços na zona rural, inclusive capacitando mulheres para construí-los.

“E não podemos falar apenas no acesso e na qualidade da água, mas também precisamos resolver a demanda, já que essa população não precisa dela só para beber, mas para produzir e viver com mais dignidade”, avaliou a pesquisadora.

Córregos secos

“Estamos no meio de uma crise hídrica sem precedentes”, sentenciou o chefe da Vigilância Sanitária de Chapada do Norte, Magno Vagner de Oliveira, que também finaliza pesquisa sobre o tema para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Segundo ele, dos 76 córregos que cortam o município, apenas três estão “correndo água”. “O Rio Capivari, nosso principal recurso natural, está praticamente morto. E o Rio Araçuaí está represado por barragens”, acrescentou.

Sobre a perfuração de poços artesianos, ele recomenda cautela. “Muitos, no desespero, estão sendo perfurados sem estudo prévio e de forma indiscriminada. Dos 94 perfurados pelo poder público, fora os feitos por particulares, 20 já secaram", disse.

"Em uma comunidade que visitamos recentemente, as amostras preliminares apontaram que a água não serve para consumo humano porque contém ferro acima do permitido. Se a contraprova der positivo, teremos que fechá-los”, lamentou o técnico.

Água para produzir

A necessidade de água para plantar e criar animais também foi lembrada pela presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e moradora da Comunidade Quilombola Córrego do Rocha, Maria Aparecida Machado Silva, a “Cida”.

“Quando falta água para beber, como acontece aqui, já faltou há muito tempo para a agricultura familiar”, destacou, lembrando ainda as dificuldades impostas pela situação em meio à pandemia de Covid-19.

Segundo ela, a escassez hídrica está na base de uma série de ameaças à dignidade, como a desagregação de comunidade tradicionais e a migração forçada, que já envolve mulheres, com reflexos inclusive no aumento de casos de trabalho escravo.

Esperança persiste

Apesar do cenário apresentado na audiência da Comissão dos Direitos da Mulher, a esperança de dias melhores persiste.

Foram várias as manifestações empolgadas de estudantes que participaram da audiência como parte das atividades educativas de ensino médio na região. Um diploma com voto de congratulações também foi entregue ao representante da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, pelos 200 anos de fundação.

Por fim, a audiência foi encerrada como uma apresentação de congado, com muita dança e cantoria. “Este é um povo que ama festejar a vida apesar de todas as dificuldades”, definiu Ana Paula Siqueira.