Mulheres se unem para suprir omissão do poder público
Audiência lembra ação de coletivo no Aglomerado da Serra que luta para amenizar dificuldades agravadas pela pandemia.
23/06/2021 - 20:02O que já estava ruim, com a pandemia do novo coronavírus ficou ainda pior quando o assunto é o acesso a políticas públicas pelas mulheres negras moradoras do Aglomerado da Serra, na Zona Sul de Belo Horizonte. Essa foi a conclusão da audiência pública realizada na tarde desta quarta-feira (23/6/21) pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Consulte o resultado e assista ao vídeo completo da reunião.
Para quem não tem a quem recorrer, a salvação nos momentos de dificuldade está na atuação de grupos como o “Mulheres da Quebrada”, cujo trabalho foi explicado e elogiado pelos participantes do debate.
“O que o Mulheres da Quebrada está fazendo é o que o Estado deveria estar fazendo. Mas, infelizmente, o Estado que queremos ainda está longe do Estado que temos atualmente”, resumiu a vice-presidenta da comissão, deputada Andréia de Jesus (Psol). “Pode parecer estranho discutirmos em uma audiência pública a situação de um bairro de BH, mas isso é o melhor exemplo de como o Estado é desigual. Com a pandemia ficou ainda mais clara a necessidade de o Estado investir mais no social”, acrescentou a parlamentar.
Além de Andréia de Jesus, a audiência foi solicitada por outras três deputadas integrantes da comissão: a sua presidenta, Ana Paula Siqueira (Rede), Beatriz Cerqueira (PT) e Leninha (PT).
Segundo os relatos apresentados, violações de direitos humanos em decorrência da impossibilidade de acesso a direitos básicos garantidos na Constituição Federal, na forma de serviços e políticas públicas, é uma rotina para os moradores do aglomerado.
Segundo Andréia de Jesus, o Aglomerado da Serra é um complexo formado por oito vilas, classificado como a maior favela de Minas Gerais e entre as maiores da América Latina, reunindo quase 50 mil habitantes. “É uma verdadeira cidade dentro de Belo Horizonte, cujos moradores estão sendo ignorados”, definiu a deputada.
Problemas - Entre os maiores problemas relatados na audiência está a precariedade no atendimento à saúde, inclusive mental, desemprego e subemprego, insegurança alimentar, violência doméstica, baixa escolaridade e exclusão digital. Neste último caso, além de dificultar o acesso aos poucos serviços públicos disponíveis, que na pandemia priorizam o atendimento remoto, ainda condenam também as futuras gerações à exclusão, já que o acesso ao ensino a distância também é precário para os jovens moradores do aglomerado.
Para as mulheres, a maioria delas negras, as dificuldades parecem ainda mais intransponíveis, conforme observou a fundadora do projeto Mulheres da Quebrada, Sheyla Bacelar. Segundo ela, a mistura da pobreza, machismo e racismo, em um ambiente violento e de exclusão de direitos, fez nascer a “coletiva”, palavra que ela faz questão de usar no feminino mesmo, como forma de autoafirmação do movimento.
Conforme explicou, o “Mulheres da Quebrada”, criado em 2018, tem 17 mulheres na coordenação de um grupo de aproximadamente 900 no total, que se ajudam como podem. A ideia é atuar pelo cuidado e garantia de saúde física, emocional e psíquica de todas elas, por meio de redes de apoio, oficinas e workshops.
O grupo também oferece apoio psicológico com profissionais voluntárias e realiza campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos e materiais de higiene pessoal, as quais se tornaram agora a principal atuação do grupo, com as dificuldades impostas pela pandemia.
“Antes da pandemia, nosso foco era sobretudo o cuidado e o carinho com essas mulheres sofridas, mas agora cuidamos mais do assistencialismo mesmo, nesse território em que temos que diariamente construir nossos direitos. Mas será que temos mesmo direitos em um local em que até mesmo a ambulância se recusa a subir o morro?”, lamentou.
Emoção - Ao explicar a atuação do grupo, Sheyla se emocionou ao revelar ter sido demitida horas antes de participar da audiência pública “Eu trabalho com assistência social e agora fui demitida sem aviso ou justificativa. Estou exausta, como todas as mulheres negras que moram lá. Mas a exaustão não está no corpo, mas de saber que todo dia eu tenho que me afirmar para a sociedade na busca por direitos”, desabafou, entre lágrimas.
Exclusão digital dificulta acesso a serviços e educação
Outras duas integrantes do Mulheres da Quebrada, a professora Melina Rocha e a psicóloga Natalia da Silva, ambas também moradoras do aglomerado, reforçaram as dificuldades impostas pela dura rotina no local.
A primeira denunciou as dificuldades da educação remota e o alto índice de analfabetismo funcional entre os moradores do aglomerado, em uma espécie de círculo vicioso que eterniza a miséria. “Mas a exclusão não começou com a pandemia. No caso das mulheres, é um projeto racista e sexista de violência estrututural que insiste em nos manter em posições subalternas na sociedade”, analisa.
Cooperação – Também participaram da audiência a promotora Patrícia Habkouk, coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e a coordenadora da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher de Minas Gerais, Terezinha Lúcia de Avelar. Ambas prometeram estreitar o relacionamento com o grupo Mulheres da Quebrada para apoiar sua atuação.
Já os representantes do governo estadual e da Prefeitura de Belo Horizonte que também participaram da reunião prometeram avaliar as demandas apresentadas para aprimorar o atendimento do poder público no Aglomerado da Serra.
Indígenas – Ainda no início da audiência pública, a presidenta da comissão, deputada Ana Paula Siqueira (Rede), manifestou sua indignação com a ameaça a comunidades indígenas por todo País pela tramitação no Congresso Nacional do Projeto de Lei (PL) Federal 490/07, que altera a legislação da demarcação de terras indígenas. “Não podemos ter mais esse retrocesso aos nossos povos originais”, afirmou, recebendo o apoio da colega Andréia de Jesus.