Histórias de abusos e de desrespeito a direitos humanos foram centrais na audiência pública

Comissão cobra reparação por crimes contra direitos humanos

Depoimentos incluíram vítimas de escravidão antiga e moderna, racismo, opressão de gênero e pobreza.

16/06/2021 - 19:35

Várias histórias de sofrimento causadas pela escravidão antiga e moderna no Brasil, pelo racismo, opressão de gênero, desigualdade e autoritarismo foram ouvidas, nesta quarta-feira (16/6/21), pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Audiência pública realizada por videoconferência teve o objetivo de resgatar a memória dos que sofrem e que são apagados da história oficial, assim como debater formas de fazer justiça a essas pessoas.

Consulte o resultado e assista ao vídeo completo da reunião.

Ainda sobrou para nós ensinar o que a história tentou apagar. Tentou nos apagar”, resumiu a deputada Andréia de Jesus (Psol), presidenta da comissão, autora do requerimento que originou a audiência pública e uma das três deputadas negras da atual legislatura, as primeiras eleitas em Minas Gerais.

A deputada Leninha (PT), também negra, disse que a permanência dos crimes contra os direitos humanos no Brasil se deve a uma transição entre a ditadura e a democracia que não puniu nem denunciou esse tipo de violação. “Nossa democracia ficou muito vulnerável”, constatou.

Um dos depoimentos mais dramáticos foi o de Madalena Gordiano, mulher negra resgatada em novembro de 2020, aos 46 anos de idade, de uma situação análoga à escravidão em Patos de Minas (Alto Paranaíba). Ela tornou-se trabalhadora doméstica não remunerada aos oito anos de idade, quando bateu na porta de Maria das Graças Rigueira para pedir comida.

Madalena nunca teve salário, dias de folga, férias. No depoimento à Assembleia, disse que sofre hoje com dores na coluna e com a falta de ter onde morar. Vive com uma assistente social e ainda luta para obter indenização na Justiça. “Esse testemunho vivo é importante para nós. Ainda está muito naturalizada, sobretudo no trabalho doméstico, a existência de pessoas que não têm direitos”, afirmou Andréia de Jesus.

Professora da Universidade Federal de Uberlândia e coordenadora da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo, Márcia Orlandini relatou, durante o debate na ALMG, que Madalena foi “dada” há 14 anos para Dalton Rigueira, um dos filhos de Maria das Graças. Segundo Márcia, Dalton vem negando a reparação financeira, alegando que a “situação” lhe tirou tudo o que tinha, incluindo o emprego e a honra.

Márcia Orlandini informou que sua equipe está construindo um programa multidisciplinar para trabalhar com o pós-resgate de pessoas em condições análogas às de escravo. Segundo ela, mais de 200 trabalhadores foram resgatados na região onde a equipe atua, apenas em 2021. “Há casos em que a mesma pessoa foi resgatada mais de uma vez”, afirmou.

Outro depoimento impressionante foi o de Sônia Sissy Kelly, ativista do Movimento TT Independente de Minas Gerais e fundadora do movimento Trans Pop Rua BH/MG. Ela contou que começou a trabalhar aos 7 anos de idade, pois pertencia a uma família de pequenos agricultores. É bisneta de índios, com pais analfabetos e criada em uma comunidade evangélica. 

Pela dificuldade em ser aceita e também aceitar a própria orientação sexual, sofreu depressão, sendo internada em um hospital psiquiátrico, nos anos 1970. Mais tarde foi para Vitória, no Espírito Santo, onde trabalhou sem remuneração como doméstica na zona boêmia e, mais tarde, tornou-se prostituta. 

“Nós somos resistência, somos luta. O que falta para nós é oportunidade. Somos expulsas das escolas e dos postos de trabalho. A prostituição é compulsória. É um crime do Estado para conosco. A gente chega na terceira idade cansada de sofrer, desde a infância”, desabafou Sônia, que hoje vive em uma ocupação urbana.

Participante cobra reparação coletiva para corrigir opressão estrutural

A cobrança por uma reparação coletiva pela opressão estrutural sofrida pela população negra veio da jornalista e cientista política Diva Moreira. Ela denunciou a ocultação de episódios de luta como a rebelião de escravos ocorrida em 1833 no Sul de Minas, liderada por heróis desconhecidos como Ventura Mina. “Os livros didáticos não falam nada sobre a nossa luta. Falam rapidinho sobre Palmares, mas não vivo em Alagoas, vivo em Minas Gerais”, afirmou Diva.

Jussara Alves falou sobre os homens e mulheres do Vale do Jequitinhonha que deixam as famílias para trabalhar em colheitas de café, cana-de-açúcar ou laranja. Ela é coordenadora do Macucultura e do Congado Vozes do Macuco. O Macuco é uma das quatro comunidades quilombolas que existem em Minas Novas (Vale do Jequitinhonha).

De acordo com a doutora em direito Lívia Miraglia, mais de 900 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo em 2021, em todo o Brasil, sendo cerca de 270 em Minas Gerais. Lívia é uma das coordenadoras da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG. O órgão participa de um sistema internacional de clínicas de direito sobre o tema.

Uma das pesquisas da clínica analisou todos os autos de infração sobre trabalho escravo em Minas Gerais, entre 2004 e 2017. “Foram 3.298 trabalhadores resgatados em Minas, em 14 anos”, revelou.

José Francisco Neres, militante do PCB, ex-jogador de futebol, foi preso e torturado durante a ditadura. Ele contou que, no período, a liderança do partido foi praticamente dizimada em Minas Gerais e até hoje muitos casos de pessoas desaparecidas não foram solucionados. Citou o exemplo de Nestor Vera, conhecido líder dos camponeses, cujo corpo foi encontrado, mas os responsáveis pela morte ainda são desconhecidos. 

Representante do governo fala de obras do Memorial de Direitos Humanos

Questionado pela deputada Andréia de Jesus sobre a implantação do Memorial dos Direitos Humanos de Minas Gerais, o subsecretário de Direitos Humanos da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, Duílio Silva Campos, fez um relato do que já foi realizado na atual gestão. O memorial foi criado pela Lei 13.448, de 2000, para funcionar na sede do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e, passados 21 anos, ainda não foi concretizado.

Segundo o subsecretário, em 2019 foi realizada a contratação da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) para o desenvolvimento de projeto de pesquisas interdisciplinares para subsidiar a musealização do antigo Dops. Foram contratados docentes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, entre bolsistas e voluntários, 30 pesquisadores estão atuando nesse projeto. Já foram produzidos diagnóstico arqueológico, plano museológico, proposta expográfica e os relatórios finais de pesquisas.

De acordo com o subsecretário, a operacionalização do memorial depende da aprovação do projeto museológico e expográfico, para que possam ser feitas as contratações para execução das obras.

Reformas emergenciais para preservar o prédio também já foram realizadas e o Estado iniciou o processo de contratação para recuperação da parte elétrica e hidráulica, com recursos direcionados por emendas populares ao Plano Plurianual de Ações Governamentais (PPAG), no montante de R$ 140 mil. A previsão é de que em 2022 sejam assinados os contratos para execução das obras de implantação do memorial

Sobre outras demandas levantadas na audiência pública, Duílio Campos afirmou, sem entrar em detalhes, que há um esforço para o enfrentamento e a erradicação do trabalho escravo no Estado.