Valentina Somarriba acredita que, no momento político atual, vários direitos estão ameaçados

Cidadania brasileira se constrói em processo contínuo

Nos 300 anos de Minas, pesquisadores refletem sobre os avanços e retrocessos da democracia e da cidadania no País.

07/10/2020 - 17:30

A complexidade da história política e social de Minas Gerais retrata quão importante o Estado foi, e continua sendo, na formação da democracia brasileira como um todo. Os avanços e retrocessos vividos, desde a fundação da capitania de Minas, em 2 de dezembro de 1720, foram objeto de reflexão nesta quarta-feira (7/10/20), durante mais uma edição do programa Pensando em Minas, transmitido em formato de live, no canal do Youtube da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

A realização do debate, do qual participaram Valentina Somarriba, doutora em Ciências Humanas, Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e também servidora da Assembleia; e Luiz Fernandes de Assis, bacharel e licenciado em História pela UFMG e professor aposentado da Escola do Legislativo, integra uma série de atividades desenvolvidas pelo Legislativo para comemorar os 300 anos de Minas Gerais.

Durante uma hora e meia, os dois debatedores discorreram sobre o processo de construção da cidadania em Minas e no País. Deixaram claro que não se trata de um produto consolidado, cabendo à atual e às próximas gerações o desafio de defender a democracia, para garantir a igualdade social e a participação política dos cidadãos.  

Construção da democracia não é retilínea, aponta pesquisador

O marco dos três séculos de criação do Estado foi estabelecido em 2 de dezembro de 1720, porque foi nesta data que a antiga capitania de São Paulo e Minas do Ouro foi desmembrada pela Coroa Portuguesa dando origem à Capitania de Minas. O pesquisador Luiz Fernandes de Assis, no entanto, classifica a data como tendo sido apenas uma "efeméride administrativa", cedida pela Coroa após ter sido iniciada, em julho de 1720, o movimento de rebelião contra o aumento dos impostos cobrados, em ouro, por Portugal.

Esse movimento, mais conhecido como Sedição ou Revolta de Vila Rica, foi fortemente oprimido e desmobilizado por Portugal, resultando na morte do líder Felipe dos Santos, pouco tempo depois. "De 1720 até 1822, não se pode falar na existência de nenhuma cidadania ainda. No regime absolutista da Coroa, o monarca detinha um poder sagrado e que não podia ser questionado", explicou o pesquisador.

De 1822 até 1930, Luiz Fernandes destaca algumas "expressões de cidadania" que apareceram no processo histórico do Brasil, desde a Independência até a Revolução de 1930, para dizer que a história do Brasil é complexa, e que a democracia, assim como a noção de cidadania, tem momentos de avanços e de retrocessos, o que pressupõe vigilância constante por parte de quem as defende. "Não gosto de falar dos 300 anos como se fosse uma linha reta, traçada em ascenção da democracia, não foi assim que aconteceu", afirma. 

Eventos como a primeira Constituição Brasileira, outorgada em 1824 por D. Pedro I; a proibição de importação de escravos, em 1831; e a reorganização das elites após o Golpe da Maioriadade, em 1840, são alguns dos marcos históricos inicialmente citados pelo historiador, para construir a reflexão que está documentada em seu artigo intitulado “Uma história a contrapelo (1822-1930)”.

Socióloga propõe reflexão sobre Direitos políticos, sociais e civis

Para a socióloga Valentina Somarriba, que explora o tema da construção da cidadania a partir de 1930, o grande marco foi a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) em 1943, na Era Vargas. Também houve grande ganho em direitos políticos, na mesma época, com a criação da Justiça Eleitoral, a instituição do voto secreto e do voto feminino. O que também não significa que houve um progresso contínuo a partir de então.

Esses avanços teriam sido interrompidos com os dois períodos de ditadura que vieram a seguir: primeiro a ditadura do próprio Getúlio Vargas, depois os 21 anos de ditadura militar. "Houve grande retrocesso em termos de cidadania, de direitos políticos, civis e sociais", pondera a pesquisadora.

Apesar da redemocratização vivida pelo País a partir de 1989, Valentina Somarriba também chama atenção para o momento político atual do Brasil em que, em sua opinião, também se vêem ameaçados vários desses direitos que se acreditavam consolidados. "Em termos de direitos políticos, por exemplo, nunca se viu, após a redemocratização do País, um presidente eleito pelo povo participar de atos públicos que defendem o fechamento do Supremo e do Congresso ou a volta da ditadura militar", disse ela referindo-se ao presidente Bolsonaro.

Na opinião de Valentina Somarriba, também está em curso no Brasil um "desmonte dos direitos sociais e da precarização das relações trabalhistas", ao mesmo tempo que cresce a insegurança alimentar, com a crise econômica, por exemplo. Outro ponto negativo seria o acirramento da divisão e da luta entre as classes sociais, fenômeno ilustrado pela frase "Você sabe com quem está falando?". Nesse contexto, pobres, negros e índios, entre outras minorias, estariam entre os chamados "cidadãos de 3ª classe", lamentou.

Em um artigo intitulado “Uma passo para frente, dois para trás: o tortuoso caminho da cidadania no Brasil, de 1930 aos dias atuais,” Valentina Somarriba reflete sobre o que é ser cidadão no País, quem é o cidadão brasileiro e faz uma retrospectiva sobre o tema.

Redes sociais - Ainda durante a live do Pensando em Minas, o historiador Luiz Fernandes Assis chamou atenção para a participação política atual, muito centrada apenas nas redes sociais, no ambiente virtual: "Isso me preocupa muito. Nesse ambiente, todos nós somos apenas produtos", alertou.

Para o historiador, uma geração que não conheceu ou sentiu na pele os efeitos de uma ditadura pode não estar muito motivada a ir para as ruas defender a democracia. "Daí a importância de informarmos essa nova geração, por outros meios que não apenas o que circula nas redes sociais", defendeu.

Sobre o programa - O Pensando em Minas, realizado mensalmente pela Escola do Legislativo em parceria com a TV Assembleia, promove um bate-papo entre pesquisadores e especialistas sobre temas da contemporaneidade que sejam relevantes para o processo legislativo e para a formação cidadã. 

Os artigos de Luiz Fernandes Assis e de Valentina Somarriba, citados durante o Pensando em Minas, são alguns dos textos que compõe o livro Poder Legislativo e Cidadania, disponível gratuitamente no portal da Assembleia Legislativa.