Especialistas pedem manutenção da política de saúde mental
Nota técnica do governo federal prevê novas diretrizes, como inclusão de hospitais psiquiátricos na rede psicossocial.
03/04/2019 - 16:59A Nota Técnica 11/19, publicada em fevereiro em um sistema interno do Ministério da Saúde, reacendeu a militância antimanicomial no País. Entre outras diretrizes, o documento, assinado pelo coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da pasta, Quirino Cordeiro Júnior, estabelece o incentivo às comunidades terapêuticas, o financiamento para compra de equipamentos de eletrochoque e a inclusão de hospitais psiquiátricos na Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
Especialistas reunidos nesta quarta-feira (3/4/19), em audiência pública da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) sobre o assunto, classificaram a possibilidade de mudanças na Política Nacional de Saúde Mental como um retrocesso.
A visão predominante entre os participantes da audiência é de que há uma tentativa de se desconstruir a reforma psiquiátrica que surgiu na década de 1970 com o objetivo de substituir os manicômios por modelos terapêuticos que evitam a segregação dos pacientes, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
Diretora do Hospital Risoleta Neves, Alzira de Oliveira destacou que, no tratamento de pessoas com transtornos mentais, os melhores resultados se dão em nível ambulatorial, sem internação, com a perspectiva de reinserção social.
“Na saúde mental, foi construída uma rede substitutiva muito melhor para o tratamento do que a reclusão em hospitais psiquiátricos, com o acesso a equipes multidisciplinares e recursos da comunidade, como arte e cultura”, relatou.
Ela lembrou o histórico de violações de direitos nos antigos manicômios e denunciou a prática de maus-tratos também em comunidades terapêuticas para ressaltar que a nota do Ministério da Saúde vai na contramão de uma tendência mundial contra o isolamento de pessoas em tratamento.
Alzira admitiu que, em alguns casos bem específicos, a internação se torna indispensável, mas, até mesmo nessa situação, ela defendeu que os pacientes sejam encaminhados a hospitais gerais.
Quanto ao uso de eletrochoques, a diretora do Risoleta Neves, assim como outros convidados, disse temer a sua banalização, tendo em vista que se trata de uma técnica controversa, que envolve riscos e que deve ser utilizada em último caso, quando for a única alternativa.
Política de Estado – Karina Taranto, superintendente da Secretaria de Estado de Saúde, informou que o Poder Executivo também analisou como retrógrado o documento do governo federal. Segundo ela, a diretriz hoje no Estado é o fortalecimento da rede já existente, baseada no entendimento de que ela possui os equipamentos necessários e serviços totalmente disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Problemas de saúde mental apresentam aumento crescente
Vice-presidente da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), Maurício Rezende apresentou um contraponto ao posicionamento do público presente. Ele salientou que o aumento crescente do número de problemas de saúde mental evidencia a desassistência no serviço público e que é natural que as propostas de tratamento evoluam.
“A realidade não se curva à nossa vontade, ainda se fazem necessárias internações para evitar que se mate ou morra”, opinou, ao abordar o deficit de leitos para tratamento psiquiátrico especializado e a taxa de regressão de alguns transtornos com o uso de eletrochoques, que pode chegar a 85%, como relatou.
Ele também salientou que existem milhares de sentenças judiciais determinando internações compulsórias. A Fhemig conta com três hospitais psiquiátricos e dois serviços ambulatoriais de assistência para a saúde mental.
Políticas públicas – Dirceu Greco, representante do Conselho Nacional de Saúde, ponderou que a epidemia de transtornos mentais evidencia não a necessidade de mais hospitais psiquiátricos, e sim o desmonte de políticas públicas e problemas sociais, como o desemprego e as drogas.
Na mesma linha, Laura Camey, da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais, salientou que um choque não restaura vínculos sociais. “Ser internado impede a sequência de qualquer projeto de vida. Nos hospitais psiquiátricos, as pessoas decidem sobre a sua vida sem você opinar”, desabafou.
Deputados destacam importância do tema
A deputada Marília Campos (PT), que solicitou a reunião, mãe de um rapaz diagnosticado com transtorno de personalidade, lembrou, para destacar a importância do debate, sua peregrinação pelo sistema de saúde em busca do tratamento mais adequado.
Seu filho já tentou suicídio e inclusive foi submetido à terapia de eletrochoque. A deputada também compartilhou as angústias de outros pais, que denunciam a falta de assistência e a existência de tratamentos não-humanizados e, muitas vezes, também ineficazes.
O deputado Hely Tarqüínio (PV) defendeu a reforma psiquiátrica realizada há mais de 30 anos, "instituída pensando em um tratamento solidário". Ele cobrou o reforço da estrutura existente.
"Não ouvi ninguém falando que é contra as internações, o que eu ouvi foi uma defesa de que os cuidados sejam feitos em casa, que esse é o melhor caminho. Para isso, precisamos também dialogar e apoiar as famílias", opinou o deputado Doutor Jean Freire (PT).
O presidente da comissão, deputado Carlos Pimenta (PDT), relatou que a reunião o fez rever seus conceitos e que é preciso retomar a luta em favor da saúde mental.