Regularização sanitária ajuda a abrir as portas do mercado para que agricultores familiares comercializem seus produtos com mais segurança e credibilidade
Mel produzido do Jequitinhonha fechou 2017 com a produção de 3,5 toneladas
Normas estaduais viabilizam a comercialização de produtos de pequenos produtores
O casal Hernane e Daniela abandonou a vida urbana para se dedicar à produção de legumes, verduras e frutas, em Caeté
Feiras organizadas por entes governamentais refletem importância do incentivo público
Beneficiamento de frutas para extração da polpa é outra linha de ação para produção da agricultura familiar

Agricultores familiares investem na qualidade da produção

Adequações sanitárias e diretrizes da agroecologia resultam em alimentos mais saudáveis e com maior valor agregado.

Por Bernardo Esteves
30/07/2018 - 10:00

Santos Martins Prates, o Santinho, já possuía uma agroindústria estabilizada em Jequitinhonha (Vale do Jequitinhonha) com a comercialização de produtos de hortifruti e de água de coco engarrafada quando resolveu se aventurar na apicultura, ou seja, criar abelhas para extrair mel.

A atividade, que começou como um hobby para consumo próprio, foi ganhando cada vez mais espaço até atingir um nível considerável de produção, de aproximadamente 400 quilos por ano. 

Foi aí que ele se deparou com um obstáculo aparentemente intransponível: sem a habilitação sanitária do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), o Mel Babilônia, de sua propriedade, era considerado clandestino, o que asfixiava sua venda.

Muitos comerciantes se recusavam a vender seu produto, por não confiar na sua qualidade, e o risco de apreensão da mercadoria era uma constante. Foi aí que ele resolveu procurar a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado (Emater) para sair da informalidade.

Da Emater, ele foi encaminhado para a unidade regional do IMA em Almenara, na mesma região, para dar início ao processo de regularização. A empresa atua em parceria com o órgão estadual em todo o processo, auxiliando os agricultores a atenderem aos requisitos exigidos.

O IMA analisa o plano de negócios do agricultor e, em vistorias técnicas, traça um panorama geral do estabelecimento, baseado em parâmetros de qualidade que envolvem o processo de produção, a infraestrutura, a higiene, o manejo de resíduos, a saúde dos trabalhadores e o armazenamento dos produtos.

Eventuais não-conformidades devem ser solucionadas pelo produtor, que assina um termo de compromisso. A partir dessa etapa, o agricultor cadastrado é provisoriamente autorizado a comercializar suas mercadorias no Estado, enquanto aguarda pelo registro definitivo. Todo o processo dura, em média, dois anos.

Na agroindústria de Santinho, por exemplo, foram exigidas algumas mudanças estruturais e a atualização dos exames médicos dos trabalhadores. Os resultados da autorização para a comercialização, contudo, compensaram todos os esforços: o Mel Babilônia fechou 2017 com a produção de 3,5 toneladas e a previsão de venda para 2018 é de 5 toneladas.

“Com o cadastro no IMA, consegui ganhar credibilidade e dominei o mercado na minha cidade. Ano passado a demanda foi tão grande que tive dificuldade para atendê-la. Estou investindo bastante na apicultura”, afirma Santinho.

Legalizado, ele vende seu mel também em cidades vizinhas e Belo Horizonte, além de participar do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que determina que ao menos 30% dos recursos federais repassados para a merenda nas escolas devem ser destinados à aquisição dos produtos da agricultura familiar.

O caso de Santinho é um exemplo do bom resultado que o incentivo à agricultura familiar pode trazer. Outro exemplo bem sucedido é o de seu Joselino e sua filha Lourdinha, do Vale do Mucuri, como mostra a primeira matéria da série especial sobre agricultura familiar.

Para marcar a importância dessa atividade, comemora-se anualmente, em 24 de julho, o Dia Estadual da Agricultura Familiar, instituído em 2013 pela Lei 20.850. A norma, oriunda do Projeto de Lei (PL) 742/11, do deputado André Quintão (PT), buscou dar visibilidade a um segmento que nem sempre recebeu a atenção necessária do poder público.

Legislação beneficia pequeno produtor

Assim como Santinho, mais de 300 agricultores familiares já foram cadastrados pelo IMA nesse processo de regularização sanitária, baseado na Lei 19.476, de 2011. A norma, originária do Projeto de Lei (PL) 4.916/10, do Poder Executivo, aprovado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em dezembro de 2010, flexibiliza a legislação, com regras diferenciadas para a habilitação de empreendimentos agroindustriais de pequeno porte.

As leis sanitárias nacionais, desenvolvidas com foco em grandes estabelecimentos industriais, inviabilizavam aqueles menores, por não respeitar a capacidade econômica do produtor, a pequena escala de produção e as características tradicionais dos produtos.

Essa incompatibilidade acabou por condenar o segmento à informalidade, até a regulamentação da Lei 19.476, atualizada este ano. Em janeiro, o governador Fernando Pimentel sancionou a Lei 22.920, que estende a aplicação dessas regras específicas de adequação sanitária a unidades situadas em área urbana e retira a exigência de participação de agricultor familiar para a caracterização de estabelecimento agroindustrial de pequeno porte.

A revisão da norma é fruto do PL 2.874/15, de autoria dos deputados Antonio Carlos Arantes (PSDB) e Fabiano Tolentino (PPS).

O IMA regulariza as propriedades que trabalham com produtos de origem animal, enquanto a Vigilância Sanitária é responsável pela análise da situação daqueles que comercializam produtos de origem vegetal.

Agroecologia norteia políticas públicas

A regularização sanitária faz parte de um espectro mais amplo de políticas públicas direcionadas à agricultura familiar em Minas Gerais embasadas na agroecologia. Esse conceito busca conciliar a produção com a conservação dos recursos naturais, a oferta de alimentos saudáveis e o desenvolvimento social e econômico de todos os componentes da cadeia produtiva.

Com esse objetivo, foi construída uma estrutura normativa formada por leis como as políticas estaduais de apoio à agricultura urbana (Lei 15.973, de 2006), de agroecologia e produção orgânica (Lei 21.146), de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades tradicionais (Lei 21.147), e de desenvolvimento rural sustentável da agricultura familiar (Lei 21.156) – as três últimas, sancionadas em 2014. Também pode ser incluída nesse rol a nova política estadual de segurança alimentar e nutricional sustentável (Lei 22.806, de 2018).

Esse arcabouço legal é derivado de projetos de lei dos ex-deputados Carlin Moura (PCdoB), Adelmo Carneiro Leão (PT) e Padre João (PT), do deputado Rogério Correia (PT) e do próprio Poder Executivo.

Para além de boas intenções registradas em normas e regulamentações, exemplos como o de Santinho e o da família Barbosa, produtora de alimentos orgânicos em Caeté (Região Metropolitana de Belo Horizonte), mostram como a atuação do poder público, em parceria com o Poder Legislativo, resulta em ações que beneficiam de forma concreta a vida das pessoas.

Produção orgânica ganha o mercado

Cansados do estresse que permeia a vida urbana, os mineiros Hernane e Daniela decidiram largar seus empregos no Rio Grande do Sul e voltar para seu estado de origem, dessa vez para viver “na roça e da roça”, como definem.

Da primeira propriedade, em Pará de Minas (Região Central do Estado), à agroindústria de Caeté que eles mantêm atualmente, em comum sempre estiveram o desejo de produzir orgânicos e o auxílio da Emater.

A instituição ajudou com cursos de capacitação e no processo de certificação junto ao IMA, que, assim como para o apicultor Santinho, foi responsável por abrir as portas do mercado aos legumes, às verduras e às frutas produzidas pela Emporium da Roça, empresa que criaram para comercializar a produção.

No início, como conta Daniela, com a falta de experiência, o casal plantou muito tomate, que acabou não tendo saída, com a falta de certificação – se não havia como comprovar que eram orgânicos e, portanto, diferenciados, os consumidores naturalmente davam prioridade aos comerciantes que já conheciam.

Eles tiveram, então, que passar por um processo semelhante à habilitação sanitária, com a análise pelo IMA de uma gama de indicadores da propriedade para a concessão do selo de orgânico aos alimentos cadastrados, que inclui itens como a proteção de nascentes, controles de adubação e a gestão econômica do empreendimento.

A certificação é obrigatória para a venda de orgânicos no comércio, um mercado que cresce em média 30% ao ano. “Eles se desenvolvem dentro do seu tempo, têm menos água, mais nutrientes e mais sabor”, explica Daniela.

O único produto da Emporium da Roça sem o selo de orgânico é o morango, produzido em um sistema semi-hidropônico (suspenso) com adubação química. Muito saboroso, ele é certificado como SAT, produto de origem vegetal sem agrotóxico.

Parece um detalhe, mas essa diferença é importante: para ser considerado orgânico, o alimento precisa se enquadrar na linha agroecológica, que não compactua com o uso de sementes geneticamente modificadas e qualquer outra interferência química no processo de produção.

Aproximadamente 80% dos alimentos da agroindústria de Daniela e Hernane chegam ao consumidor final por meio da participação em feiras. Às terças-feiras, eles trabalham em uma promovida pela Prefeitura de Belo Horizonte; às sextas, em outra organizada na Cidade Administrativa; e já há o projeto de uma feira quinzenal, às quartas-feiras, na UFMG.

O fato de todas elas serem organizadas por entes governamentais reflete a importância do incentivo público às boas práticas de produção.

Com um faturamento de cerca de R$ 10 mil mensais, o casal Barbosa já planeja a expansão da horta de frutas e sua consequente certificação para a venda com maior valor agregado de polpas e geleias.

Agricultores recebem incentivo para preservar o meio ambiente

A agroecologia também está presente em outra linha de ação para a produção da agricultura familiar encampada pelo Estado: o Programa Mineiro de Incentivo ao Cultivo, à Extração, ao Consumo, à Comercialização e à Transformação do Pequi e Demais Frutos e Produtos Nativos do Cerrado (Pró-Pequi), instituído pela Lei 13.965, de 2001.

O objetivo do programa é integrar a população do cerrado e da caatinga para o uso racional desses biomas, em uma perspectiva de sustentabilidade ambiental. Para tanto, incentiva práticas de agroextrativismo, incluindo atividades de pesquisa e a profissionalização de produtores, bem como a transformação e a comercialização das frutas locais.

Uma das principais ações do programa é o fomento para a aquisição de equipamentos e insumos necessários para as agroindústrias familiares trabalharem com o beneficiamento dessas frutas. Em 2017 foram lançados dois editais, com a liberação de R$ 850 mil.

Uma das vencedoras foi a Cooperativa Grande Sertão, de Montes Claros (Norte de Minas), que trabalha com a comercialização de polpa de frutas para a merenda escolar.

Como explica o responsável pela cooperativa, Aparecido Alves de Souza, o Cido, a compra de envazadoras automáticas a vácuo e um contêiner para ampliar a capacidade de congelamento de polpas será financiada com R$ 120 mil do programa.

Os novos equipamentos serão utilizados para a implantação de uma linha de sucos de frutas do cerrado.

População carente – “O Pró-Pequi tem reflexos não só econômicos, mas também sociais, pois beneficia toda a cadeia produtiva do cerrado, atingindo a população de regiões bastante pobres de Minas Gerais”, destaca o deputado Rogério Correia, autor do PL 1.025/00, que deu origem ao programa.

Esta é a última matéria da série especial sobre agricultura familiar.