Com um valor total de R$ 31 milhões, 97 emendas ao PPAG contribuíram para a agricultura familiar nos últimos dez anos
A família Neves conseguiu o título da propriedade em que mora por meio de mutirão do Iter
Lourdinha quer dar prosseguimento à atividade do pai, mas sabe que é preciso investir em inovação
Nova visão do poder público em relação à agricultura familiar e legislação específica em benefício da categoria impulsionam segmento como política de Estado
PL de Antonio Carlos Arantes resultou na PAA Familiar

Agricultura familiar é política de Estado em Minas Gerais

Assembleia contribui para o desenvolvimento do setor com a elaboração de leis e a inserção do tema na agenda pública.

Por Bernardo Esteves
24/07/2018 - 10:56

O Censo Agropecuário de 2006, último grande levantamento sobre o setor realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta que a agricultura familiar é responsável por 79% dos cerca de 550 mil estabelecimentos rurais em Minas Gerais. Em termos nacionais, ela responde por 35% do PIB e absorve 40% da população economicamente ativa do País.

Com o intuito de conscientizar a sociedade sobre a importância dessa atividade, comemora-se anualmente, em 24 de julho, o Dia Estadual da Agricultura Familiar, instituído em 2013 pela Lei 20.850. A norma, oriunda do Projeto de Lei (PL) 742/11, do deputado André Quintão (PT), buscou dar visibilidade a um segmento que nem sempre recebeu a atenção necessária do poder público.

As mãos calejadas do trabalhador do campo simbolizam os desafios enfrentados ao longo de décadas para a melhoria das políticas públicas, a comercialização dos produtos e o consequente incremento da renda dos pequenos agricultores.

A família Neves, de Itaipé (Vale do Mucuri), representa esse processo de transformação que ganhou destaque, no Brasil e em Minas, a partir dos anos 2000, com a inclusão no planejamento dos governos estadual e federal de programas e ações estruturadores da agricultura familiar, até então beneficiada quase que exclusivamente por projetos assistencialistas.

O patriarca, Joselino, de 87 anos, já nasceu na propriedade em que vive atualmente, filho de empregados da antiga fazenda à qual os seus dois hectares de terra pertenciam.

Ele recebeu autorização do proprietário para construir uma casa de pau-a-pique para sua família e, por muitos anos, tirou das plantações de frutas, legumes e verduras e do árduo trabalho no local o sustento dos seus oito filhos.

Tendo cumprido, há muito tempo, os requisitos para solicitar, por meio de usucapião, a propriedade da terra, ele conseguiu apenas aos 80 anos de idade a sua posse legal, não sem antes sofrer ameaças de morte de um dos herdeiros da fazenda.

Sua filha caçula, Maria de Lourdes, de 29 anos, apesar de todos os obstáculos ainda existentes, provavelmente não teria que enfrentar um caminho tão tortuoso para realizar o sonho de ter sua propriedade reconhecida.

PPAG - Nos últimos 10 anos, emendas oriundas do processo de participação popular promovido pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para a discussão do Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) destinaram quase R$ 700 mil para a garantia do acesso à terra e à regularização fundiária.

Nesse mesmo período, 97 emendas ao PPAG contribuíram para a agricultura familiar, com um valor total de R$ 31 milhões.

Joselino conseguiu o título de sua propriedade por meio de um mutirão realizado na região pelo extinto Instituto de Terras do Estado (Iter), um dos órgãos beneficiados pelas emendas. Hoje esse trabalho é levado a cabo pelo Programa Estadual de Regularização Fundiária Rural.

Atualmente, tramitam na Assembleia proposições que pretendem avançar no tema, como os PLs 758/15, do deputado Antonio Carlos Arantes (PSDB), e 3.601/16, de autoria do deputado Tadeu Martins Leite (MDB).

O primeiro regulamenta dispositivos da Constituição do Estado que autorizam o Poder Executivo a promover, sem prévia autorização legislativa, a alienação e a concessão de terras públicas e devolutas, aquelas sem destinação e que nunca integraram o patrimônio de um particular. O segundo traz novos mecanismos para facilitar a demarcação fundiária urbana e rural.

Sucessão rural resgata tradições do campo

Lourdinha, como é mais conhecida a filha caçula de Joselino, carrega consigo a esperança de que o trabalho iniciado por seus pais não se perca com a constante ameaça do êxodo rural. Ela relata que, na comunidade onde vive, é a única da sua faixa etária que decidiu permanecer no campo. “O nome da nossa família foi construído aqui, é uma coisa de sangue”, define.

Para levar esse sonho adiante, Lourdinha se formou como técnica em agropecuária e está cursando a faculdade de agronomia.

Ela sabe que, para cumprir o intuito de retomar e impulsionar a comercialização de produtos da horta da família e de café processado, atividade prejudicada pela mudança de quatro irmãos para a Capital, é preciso investir em conhecimento e inovação.

Mais uma vez ela pode se beneficiar da nova visão do poder público em relação à agricultura familiar, com destaque para a interlocução com a sociedade promovida pelo Parlamento mineiro.

Programas e ações para a organização de agroindústrias, a inclusão de mulheres, a permanência de jovens, a comercialização e a produção sustentável no campo mobilizaram mais de R$ 25 milhões em emendas populares ao planejamento governamental na última década.

Desse processo surgiram, por exemplo, diversas medidas de apoio aos projetos profissionais dos jovens egressos das escolas família agrícola (EFAs), instituições geridas pela própria comunidade que têm sua linha pedagógica baseada na alternância de atividades na escola e no campo. Elas também oferecem cursos técnicos agrícolas certificados pelo Ministério da Educação.

Lourdinha participou da fundação da EFA em Itaipé, em 2014, onde trabalhou como monitora por dois anos e meio. “É importante levar conhecimento técnico para a melhoria da produção. As EFAs educam os filhos e as famílias, preparando-os para a sucessão”, destaca.

Com o objetivo de repassar a esses centros educativos recursos para o custeio de despesas com a sua administração e o corpo docente, a Lei 14.614, de 2003, instituiu o Programa de Apoio Financeiro à Escola Família Agrícola. A norma é oriunda do PL 1.886/01, do ex-deputado Adelmo Carneiro Leão (PT), aprovado na ALMG em 2002.

Minas adota legislação específica para o setor

A base da estrutura governamental de apoio ao segmento foi instituída com a Lei da Agricultura Familiar (Lei Federal 11.326, de 2006) e os programas nacionais de fortalecimento da agricultura familiar (Pronaf), de aquisição direta da agricultura familiar (PAA)de alimentação escolar (Pnae) e de reforma agrária.

Em Minas, surgiu em 2001 a primeira ação específica para a categoria, o Programa Mineiro de Incentivo ao Cultivo, à Extração, ao Consumo, à Comercialização e à Transformação do Pequi e Demais Frutos e Produtos Nativos do Cerrado (Pró-Pequi), implantado por meio da Lei 13.965, de 2001. A norma tramitou na Assembleia na forma do PL 1.025/00, apresentado pelo deputado Rogério Correia (PT).

O PL 1.925/04, do ex-deputado Padre João (PT), resultou na criação da Política Estadual de Apoio à Agricultura Urbana, prevista na Lei 15.973, de 2006. No ano seguinte, entrou em vigor a Lei 16.680, que dispõe sobre o apoio ao processamento da produção familiar e à comercialização direta entre agricultores e consumidores. O deputado Carlos Pimenta (PDT) é o autor do PL 2.257/05, que deu origem à norma.

Com a aprovação na Assembleia do PL 4.916/10, do Poder Executivo, foi sancionada em 2011 a Lei 19.476, que trata da simplificação dos procedimentos de habilitação sanitária de estabelecimentos agroindustriais rurais ou de pequeno porte.

Nos anos de 2013 e 2014 foram instituídas as política estaduais de aquisição de alimentos da agricultura familiar – PAA Familiar (Lei 20.608), de agroecologia e produção orgânica (Lei 21.146), de desenvolvimento dos povos e comunidades tradicionais (Lei 21.147) e de desenvolvimento rural sustentável da agricultura familiar (Lei 21.156). Elas são oriundas, respectivamente, dos PLs 2.352/11, do deputado Antonio Carlos Arantes, 2.547/11, do ex-deputado Adelmo Carneiro Leão, 883/11, do ex-deputado Carlin Moura (PCdoB), e 177/11, do deputado Rogério Correia.

Importância do segmento - Destaca-se, no âmbito de reconhecimento institucional da agricultura familiar pelo Governo de Minas, a criação da Subsecretaria de Agricultura Familiar e Regularização Fundiária, em 2011, e da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário, em 2015.

Com todas essas ações, a agricultura familiar se consolidou como uma política de Estado, tendo como pilares a valorização dos saberes tradicionais, a economia popular solidária e a oferta de alimentos saudáveis e a baixo custo. Outras diretrizes são a preservação do meio ambiente, a assistência técnica, o financiamento de atividades de produção e a organização de associações e cooperativas.

A Assembleia teve um papel preponderante nesse processo não só com a elaboração de normas jurídicas, mas também com a inserção do tema na agenda pública e a inclusão dos atores envolvidos na elaboração e no monitoramento das políticas públicas.

Legislação Básica

Norma

Origem

Descrição

Lei 13.965, de 2001

PL 1.025/00, do deputado Rogério Correia (PT)

Instituiu o programa Pró-Pequi, que incentiva o cultivo e a comercialização de frutos do cerrado

Lei 15.973, de 2006

PL 1.925/04, do ex-deputado Padre João

Criou a Política Estadual de Apoio à Agricultura Urbana

Lei 16.680, de 2007

PL 2.257/06, do deputado Carlos Pimenta (PDT)

Dispõe sobre o apoio ao processamento da produção familiar e à comercialização direta entre agricultores e consumidores

Lei 19.476, de 2011

PL 4.916/10, do Poder Executivo

Simplificou os procedimentos de habilitação sanitária de estabelecimentos agroindustriais rurais ou de pequeno porte

Lei 20.608, de 2013

PL 2.352/11, do deputado Antonio Carlos Arantes (PSDB)

Implantou a Política Estadual de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA Familiar)

Lei 21.146, de 2014

PL 2.547/11, do ex-deputado Adelmo Carneiro Leão

Instituiu a Política Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica

Lei 21.147, de 2014

PL 883/11, do ex-deputado Carlin Moura

Criou a Política Estadual de Desenvolvimento de Povos e Comunidades Tradicionais

Lei 21.156, de 2014

PL 177/11, do deputado Rogério Correia (PT)

Estabeleceu a Política Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável da Agricultura Familiar

Cooperativismo impulsiona produção de frutas do cerrado

É nesse solo fértil que floresceram trajetórias de sucesso, como a de Aparecido Alves de Souza, o Cido, responsável pela cooperativa Grande Sertão, de Montes Claros (Norte de Minas). Desiludido com os prejuízos causados pela monocultura na região, ele encontrou no cooperativismo uma alternativa para permanecer no campo.

Criada em 2003, a Grande Sertão processa 250 toneladas de polpas de frutas do cerrado por ano. Outras atividades exploradas envolvem a cana-de-açúcar e o buriti, com a extração de óleos para a indústria de cosméticos e a produção de rapadura e açúcar mascavo.

A criação da cooperativa impulsionou a comercialização dos produtos dos 230 cooperados, que tiveram acesso ao mercado com a bem-sucedida proposta de valorizar a cultura regional e os ecossistemas naturais. Cerca de 80% de tudo o que é produzido é direcionado à merenda escolar, mas há também a venda direta para o comércio, ações que contribuíram para o faturamento de R$ 1,7 milhão da instituição em 2017.

Cido contou com o apoio da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Centro de Cultura Alternativa do Norte de Minas (CAA) para a definição do plano de negócio. Outros parceiros foram o Sebrae e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado (Emater), com cursos de formação para o cooperativismo.

Programas de incentivo – Até 2012, as vendas da cooperativa estavam atreladas ao Programa de Aquisição Direta da Agricultura Familiar (PAA), que utiliza mecanismos de comercialização que favorecem o segmento.

A partir de 2013, o carro-chefe passou a ser o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), o qual determina, desde 2009, que ao menos 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional da Alimentação Escolar para a merenda nas escolas brasileiras devem ser destinados à aquisição dos produtos da agricultura familiar.

Com base na experiência desses programas federais, foi instituída em Minas a Política Estadual de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA Familiar). A norma também determina que no mínimo 30% dos recursos do Estado destinados à compra institucional de alimentos sejam aplicados na compra direta de produtos de agricultores familiares ou de suas organizações.

Por meio da política estadual, a Grande Sertão vendeu aproximadamente 450 quilos de polpa de frutas para o consumo do batalhão do Exército de Montes Claros em 2017. “A PAA Familiar contribui para que os produtos da agricultura familiar sejam direcionados diretamente para o consumidor, eliminando atravessadores, além de ser uma garantia de comercialização”, pontua Cido.

Como explica o deputado Antonio Carlos Arantes, presidente da Comissão de Agropecuária e Agroindústria da ALMG e autor do projeto que resultou na norma, a intenção é priorizar os produtos regionais e de maior qualidade, ecologicamente sustentáveis.

“A política veio para simplificar e desburocratizar com a venda direta. O dinheiro fica na cidade, circula no comércio”, ressalta.

A PAA Familiar foi atualizada este ano, por meio da Lei 22.911, sancionada pelo governador em janeiro. A lei é oriunda do PL 1.314/15, do deputado Bonifácio Mourão (PSDB), que torna mais clara a obrigação de aquisição dos produtos da agricultura familiar estabelecida e acrescenta a possibilidade de compra e distribuição de sementes certificadas locais, tradicionais ou crioulas.

Esta é a primeira matéria especial de uma série sobre a agricultura familiar. A segunda será publicada no dia 30 de julho.