Eugênio foi detido em 1995, em BH, apontado como o
Eugênio explicou que sua pintura retrata a solidão dentro da cela e o pensamento no amor

Melhor ter ido ao Vietnã, diz preso injustamente por 18 anos

Confundido com estuprador, artista relata perdas e ainda sofre com descumprimento de indenização pelo Estado.

17/08/2016 - 15:00

Revelando o sonho de ainda realizar “alguma obra social” para crianças e de se mudar em breve para o Rio de Janeiro - “em Belo Horizonte me sinto em risco e estigmatizado” -, o artista plástico Eugênio Fiúza Queiroz relembrou nesta quarta-feira (17/8/16) as dificuldades vividas nos 18 anos em que ficou preso injustamente por crimes de estupro que não cometeu.

Hoje com 66 anos de idade, Eugênio ainda aguarda reparação do Estado pelos danos sofridos e que são cobrados na Justiça. "Não sei como estou uma pessoa normal. Não se explica eu ter vivido. É como se tivesse (enfrentado) uma pena de morte todos os dias", disse, em relato emocionado a deputados, em audiência da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

Durante a reunião, vieram à tona informações sobre recentes decisões favoráveis a Eugênio, que se mostrou surpreso com o que desconhecia até então. Conforme levantado pela comissão, o Estado foi intimado pela 5ª Vara da Fazenda Pública, em despacho dado na última quinta-feira (11/8), a cumprir em 48 horas decisão anterior da mesma Vara concedendo ao autor pensão alimentícia.

Decisão - Conforme decisão judicial datada de 4 de julho passado e que originou a intimação recente, foi determinado ao Estado o pagamento mensal de cinco salários mínimos ao autor, a título de pensão alimentícia. Conforme a decisão, trata-se de uma antecipação de tutela em caráter de urgência, e o Estado teria o prazo de 30 dias para contestação.

O juiz Adriano de Mesquita Carneiro manifesta na decisão que o Estado deve efetuar o pagamento ao reclamante "uma vez que já é idoso e que ficou encarcerado, injustamente, por um tempo considerável". Menciona, ainda, que o risco de dano consubstancia-se em lesões irreparáveis à vida e à dignidade do autor.

Entenda o caso - Eugênio foi detido em 1995, em Belo Horizonte (RMBH), ao ser reconhecido por uma vítima e depois outras oito. Apontado como o "maníaco do Anchieta", foi confundido com o verdadeiro criminoso pela semelhança física e condenado a 37 anos de prisão, dos quais cumpriu mais de 18 anos.

As autoridades esclareceram o engano quando o ex-bancário Pedro Meyer, autor da série de crimes de estupro cometidos à época, foi reconhecido em 2012 e condenado a 13 anos de prisão.

Relato aponta ameaças e desejo de mudança

"Se fosse para ir para a guerra do Vietnã ou do Iraque eu iria para não passar por tudo isso que passei". Em seu relato aos deputados, Eugênio Fiúza tentou dimensionar o que passou na prisão repetindo por diversas vezes "é difícil de contar".

Ele relatou ter sido preso quando conversava com uma ex-namorada e levado inicialmente para a Delegacia de Furtos e Roubos, na Capital. “Na Furtos e Roubos fui pendurado em pau de arara e passei uns vinte dias sem comida e sem dormir, no meio de pessoas baleadas".

Transferido depois para outra unidade, foi colocado numa cela com outros 50 presos. "Quando cheguei estavam batendo tambor e mostrando minhas fotos nos jornais. Um pegou um barbeador e foi só voando sangue com pelo", contou Eugênio, que informou ter tido o corpo raspado à força por presos que o apontavam como o estuprador dos jornais.

"Nesses anos todos vi presos morrerem, mulheres, agentes, bandidos, mas eu era o mais vulnerável, fazendo meus desenhos, minha arte. Encontrei conforto nas palavras de Deus e a pintura me deu força", afirmou ele.

Apesar da busca de momentos de alento, Eugênio também falou de subterfúgios adotados contra a violência e as ameaças de morte que diz ter sofrido durante sua prisão. Houve momentos, relatou ele, em que teve que se aliar a criminosos para não morrer, e dias em que fugiu do banho de sol para não ser importunado ou confrontado. "Se bater em alguém hoje, amanhã você morre, era como funcionava. Já tive que levar droga para outros na cadeia e na rebelião me transformava em bandido com lenço na cabeça para não morrer".

Sobre o desejo de mudar de cidade, ele explicou que ao sair da prisão já tinha perdido pais e irmãos, que morreram no período. "Minha família foi desaparecendo. Tenho um filho que não via há 35 anos. Quero começar minha vida de novo, sou traumatizado, sonho toda noite. Tive inimigos lá dentro da prisão e sinto que minha vida corre perigo", destacou, pouco antes de mostrar um de seus quadros, explicando que a pintura retratava ao mesmo tempo a solidão dentro da cela e o pensamento no amor.

Deputados querem acompanhar cumprimento de decisão

Para o presidente da comissão, deputado Cristiano Silveira (PT), o Estado deve arcar com o processo por danos morais movido pelo ex-preso. "Ele teve que se reinventar para poder sobreviver à morte e à violência na prisão", frisou o parlamentar ao lembrar que a pessoa que comete o crime de estupro, pelo qual houve a condenação errônea, é submetida a códigos internos próprios das cadeias.

Abordando o mesmo ponto, o deputado Cabo Júlio (PMDB) ressaltou que "o crime sexual é repudiado inclusive pelo mundo do crime, sofrendo o preso todo tipo de agressão e animosidade por parte da própria cadeia".

Segundo Cabo Júlio, diante da intimação dada ao Estado é necessário acompanhar o caso junto ao Executivo. “Foi algo muito grave o que o Estado brasileiro fez com a vida desse senhor".

Considerando que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não podem se omitir em relação ao caso, o deputado Carlos Pimenta (PDT) afirmou, por sua vez, que a comissão cumpre importante papel ao ouvir denúncias dos cidadãos na defesa dos direitos humanos, mas chamou atenção também para as dificuldades que, segundo ele, são encontradas por policiais civis e militares no exercício de sua função.

Consulte o resultado da reunião.