A Colônia Santa Izabel, cortada pelo Rio Paraopeba, chegou a ter 5 mil internos
O ex-hanseniano Nelson, que luta contra o preconceito, orgulha-se por ter vencido a doença
A colônia simulava uma cidade e tinha até moeda própria, o Boró
Eva, que mora na colônia, mobiliza-se por causas importantes para o local, como manter o posto de saúde

Antigas colônias de hanseníase: uma dívida a ser paga

Legislativo retomará debate sobre regularização fundiária e proteção ao patrimônio histórico dessas instituições.

Por Maria Célia Pinto
06/06/2016 - 09:00 - Atualizado em 21/02/2018 - 15:46

A edição da Lei 15.790, de 2005, que concedeu bolsa mensal aos ex-hansenianos que prestaram serviços nas antigas colônias de internação em Minas Gerais, foi um passo importante na luta desses pacientes por reconhecimento e por mais dignidade. Mas além da aprovação de normas, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) também promoveu, nos últimos anos, discussões importantes relativas, por exemplo, à regularização fundiária das terras dessas colônias, com o objetivo de dar posse de imóveis aos ex-hansenianos e seus parentes que ainda vivem nesses locais.

Júlio César Pinto, assessor da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig), responsável por essas unidades, aponta que o problema fundiário existe em todas elas, mas é mais forte em Santa Izabel, em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), onde a ocupação foi maior e mais desorganizada e onde existem cerca de 10 mil pessoas em terras da Fhemig. “A titulação já vem ocorrendo em colônias do Rio de Janeiro e do Acre”, contrapõe Eni Carajá Filho, coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) em Minas.

Em 2017, o deputado Geraldo Pimenta apresentou o  Projeto de Lei 4.749, que deu origem à Lei 22.816. A norma garante a regularização fundiária da antiga Colônia Santa Izabel.

Patrimônio – O deputado Geraldo Pimenta (PCdoB) propõe o tombamento das antigas colônias, que têm um acervo histórico material e imaterial muito relevante. Ele tem um motivo especial para se dedicar ao assunto: começou sua carreira de médico trabalhando na Colônia Santa Izabel.

Pimenta chegou à colônia em 1984, num momento de transição, de luta pela redemocratização do País, pelo fim dos manicômios e pela construção do Sistema Único de Saúde (SUS), entre outras questões. "Eu fui com a visão de mudar o mundo. A opção pela colônia era a opção pelos mais pobres", aponta.

Aquele era um momento de transição também na própria unidade, pois embora o fim da segregação estivesse oficializada desde 1976, na prática, os casos de internação compulsória ocorreram por, pelo menos, mais dez anos.

A convivência com as experiências de discriminação dos pacientes não impediu, porém, que Geraldo Pimenta notasse a amplidão, a tranquilidade e a grande beleza da colônia, com construções características dos anos 1930. “Esse patrimônio poderia ser recuperado e transformado em unidade de tratamento para doentes crônicos, que hoje enchem hospitais como o Regional de Betim”, sugere.

Por trás de paredes, muitas histórias de vida

Cada construção em Santa Izabel guarda, de fato, muitas histórias. Mas pelo menos uma delas, que já virou livro, é marcada pela natureza do lugar. O Rio Paraopeba, que corta a colônia, foi uma das poucas fontes de alegria para Nelson Pereira Flores, 72 anos, que chegou ao local com 12. Tão bom como mergulhar naquelas águas, então limpas, mesmo sendo castigado por isso, foi apenas aprender a ler e a escrever. A relação do ex-hanseniano com o Paraopeba gerou "O Menino e o Rio", lançado em 2012.

Ao narrar a volta para casa, na região atual de Salinas (Norte de Minas) depois de quatro anos, o “menino” conta que ficou com o coração dividido por se separar do rio e dos colegas que ensinou a nadar. A hanseníase, porém, fez com que ele retornasse a Betim, de forma definitiva, menos de dois anos depois. “Vi que a doença era poderosa”, afirma.

A história completa de 'seu' Nelson vai virar outro livro, ainda sem nome. Na nova obra, ele conta a vida antes da colônia, a descoberta da doença, o preconceito contra sua família e a “cena mais cruel que presenciou na vida”: a partida simultânea de cinco dos sete filhos de dona Dalila Alves Pereira, entre os quais os dois caçulas, no dia 16 de agosto de 1955.

“Olhando para trás, não muito distante, vi a pequena mulher ajoelhada no chão do grande terreiro e ouvi a frase que pronunciou quase que sussurrando: 'Valei-me, meu Senhor Bom Jesus da Lapa'. Ali, uma família muito unida se partia ao meio por uma doença que fazia medo a todas as pessoas e causava tantos sofrimentos e humilhações aos portadores e seus familiares: a lepra”. O que veio depois, 'seu' Nelson conta pessoalmente. “Vi muita gente suicidar. Gente que não aceitou a doença”.

Tantos anos depois, Nelson se orgulha por ter vencido a doença e também pela luta contra o preconceito, que continua. “Eu busquei meu mundo livre”, insiste em dizer. E isso faz sentido. Para quem viveu o horror da segregação e da perda da família, não pode haver prêmio maior que a liberdade, traduzida na cura de uma doença que era chamada de “bruxa” pelo menino do Rio Paraopeba.

Uma comunidade como outra qualquer?

Santa Izabel foi criada para ser uma cidade independente e permitir uma “vida normal” aos internos, até porque não havia perspectiva de que saíssem dali. A colônia tinha delegacia, igreja, olaria, teatro, geração própria de energia e até uma moeda própria, o Boró, além de um extra-oficial “baile de mulheres”, onde a prostituição era tolerada. E chegou a ter 5 mil internos.

Além dos pavilhões para crianças e adultos, separados por sexo, havia casas destinadas a famílias que se formassem ali e a quem mais pudesse pagar. Afinal, toda sociedade que se preze, em maior ou menor escala, tem sua hierarquia.

Sabará (RMBH) concentrava os extremos da pirâmide social de hansenianos: tinha um pensionato particular, para a elite; e uma colônia que recebia os indesejados, doentes mentais e presos perigosos.

A “vida normal” dentro da colônia incluía, ainda, o futebol. O esporte era usado também para quebrar o preconceito e provar que um sujeito acometido pela doença não era, necessariamente, um inválido.

Lázaro Inácio Silveira, o "Bifão", 78 anos, foi quase um garoto-propaganda dessa mensagem. Natural de Carmópolis de Minas (Centro-Oeste), ele entrou em Santa Izabel com sete ou oito anos. Seu pai já estava na colônia e morreu poucos anos depois de sua chegada. “Voltei em casa uma vez. Depois, não mais”, lamenta Lázaro, que ainda vive no antigo pavilhão masculino de Santa Izabel.

Bifão começou a jogar aos 15 anos, era considerado um craque de bola pelos internos, e manteve a prática até os 70. “O pavilhão das crianças tinha a 'peladinha', com um professor que atuava no União (um dos três times da colônia). Achei aquilo interessante, tomei impulso e fui aprimorando. Acabei selecionado para dois times”, relembra.

A equipe viajava, inicialmente para jogar contra colônias de outros estados. Depois, passou a enfrentar times de fora das colônias. Hoje, o craque já não enxerga bem, se recusa a fazer fotos e aponta uma erisipela (doença infecciosa aguda na pele) como causa de depressão.

Mas, como outros internos, ele persegue a meta da superação. “O futebol foi importante para mim. Ainda hoje me sinto bem fisicamente e mentalmente”, suaviza. E filosofa que o esporte lhe deu amigos, um aconchego, e trouxe um “tipo de conscientização”.

Na verdade, o futebol foi fundamental não apenas para os jogadores. Toda a colônia se movimentava, por exemplo, na eleição de rainha e princesa de cada um dos times. Algumas imagens estão no museu em Santa Izabel e também na memória de Eva Maria Dias do Nascimento, 55 anos, moradora da colônia.

Ali perto do museu, por volta dos 17, 18 anos, ela namorava escondido e, em dias festivos, oferecia música pelo alto-falante, “apenas com as iniciais, para camuflar”. A cena pode lembrar uma quermesse em uma comunidade qualquer do interior de Minas. Mas a realidade era a segregação. Eva foi a única de 13 irmãos acometida pela doença e foi levada à força para a colônia, aos 15 anos. “Vi gente sem nariz, sem orelha. Tive medo e não queria ficar. Meu pai morreu no mesmo mês, sem saber que eu estava aqui”, relata.

Enquanto Eva tentava se adaptar ao pavilhão das moças, sua família enfrentava o preconceito em Montes Claros (Norte de Minas) e acabou se mudando, tempos depois, também por outros motivos, para o entorno de Santa Izabel. “Em 1985, recebi licença para ir à minha casa, em Montes Claros. Tive uma reação psicológica. Os vizinhos denunciaram, e um infeliz agente de saúde me fez voltar para a colônia”, conta.

Eva lamenta não ter podido estudar, mas, hoje, briga por causas importantes em Santa Izabel, como a manutenção do posto de saúde local. É uma forma de se sobrepor à própria história. “Eu luto pelos que não têm voz”, resume. 

Esta é a última reportagem de uma série especial sobre a hanseníase.