Léo Heller defende que o acesso à água potável não dependa de nenhuma condição, sobretudo financeira - Arquivo/ALMG

Entrevista - Defesa da água como direito humano

Palestra magna que abre etapa final do Seminário Águas de Minas será realizada pelo relator especial da ONU Léo Heller.

23/09/2015 - 17:04

O acesso à água como direito humano vai pautar a palestra magna do relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU), Léo Heller, que abre a etapa final do Seminário Águas de Minas III: Os desafios da crise hídrica e a construção da sustentabilidade, nesta terça-feira (29/9/15), a partir das 18h30, no Plenário da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

O mineiro Léo Heller assumiu o cargo de relator especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário da ONU no fim de 2014. O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador da Fiocruz explica que o enfrentamento da crise e a adoção de medidas para tornar a gestão dos recursos hídricos mais eficiente e inclusiva passam pela estabilidade das políticas públicas e pela revisão de parâmetros conceituais.

Para ele, esses direitos ainda não foram amplamente incorporados na prática, sendo, muitas vezes, negligenciados. Heller defende que o acesso à água potável não deveria depender de qualquer condição, sobretudo financeira. “Quando se passa a tratar a água como um direito essencial do ser humano, torna-se inadmissível que o seu fornecimento seja interrompido por falta de pagamento”, exemplifica.

O posicionamento vai ao encontro da resolução aprovada em Assembleia Geral da ONU, em 2010. De acordo com o documento, 884 milhões de pessoas no mundo não têm acesso a fontes confiáveis de água potável e mais de 2,6 bilhões não dispõem de instalações sanitárias básicas. O Brasil e outros 121 países votaram a favor da resolução, comprometendo-se a universalizar o acesso a esses direitos indispensáveis à vida.

Regiões mineiras priorizam demandas

Os encontros regionais do Seminário Águas de Minas III, realizados de junho a agosto, revelaram que os comitês de bacia hidrográfica, a sociedade civil organizada e a população mineira esperam a adoção de medidas voltadas para a revitalização dos cursos d'água, a recuperação das áreas degradadas, a ampliação das redes de saneamento básico e a revisão de processos de licenciamento ambiental, sobretudo aqueles relativos à mineração. Essas reivindicações pautaram as propostas elaboradas na etapa de interiorização do evento.

As demandas serão analisadas e submetidas à votação na plenária final do seminário juntamente com as 36 proposições formuladas pelas comissões técnicas interinstitucionais (CTIs), que anteciparam a realização das reuniões no interior. Todas as propostas foram construídas conforme as temáticas do seminário: a crise hídrica; a gestão dos recursos hídricos; atividade minerária, indústria e energia; agricultura; fomento, custeio, receitas e destinação; e saneamento. Sediaram os encontros as cidades de Montes Claros, Divinópolis, Governador Valadares, Ubá, Poços de Caldas, Belo Horizonte, Paracatu e Uberlândia.

Em Montes Claros (Norte de Minas) foram discutidos, em especial, os problemas relacionados às bacias hidrográficas dos Rios Verde Grande e Jequitaí-Pacuí. O documento final do encontro apresenta 20 novas propostas. Uma delas solicita o fim das atividades minerárias a céu aberto devido ao significativo consumo de água. Também foram solicitadas a criação de um sistema estadual de cadastramento, proteção e monitoramento das nascentes e a reativação do Núcleo de Pesquisa de Tecnologia de Gestão e Convivência com a Seca do Semiárido Mineiro.

A revisão dos procedimentos de licenciamento para implantar estações de tratamento de esgoto, a isenção fiscal como estímulo aos sistemas de energia limpa e o fortalecimento dos comitês de bacia hidrográfica a fim de promover, junto aos municípios, projetos de preservação e revitalização dos cursos d'água são algumas das 16 propostas apresentadas no encontro regional de Divinópolis (Centro-Oeste de Minas). Esse encontro abordou a Bacia do Alto São Francisco.

Já as demandas das bacias do Rio Doce foram debatidas no encontro de Governador Valadares. Também constam no documento final 16 novas propostas, que buscam a criação de dotação orçamentária específica para o desenvolvimento de ações para reduzir o desmatamento e recuperar áreas degradadas e a exigência de autorizações especiais para novos contratos de plantio de eucalipto. Obrigar os empreendedores de usinas hidrelétricas a garantir condições de infraestrutura econômica e social para todos os atingidos pelas obras também está no rol de proposições.

A proibição da construção de novos minerodutos no Estado é uma das 21 propostas consolidadas durante o encontro regional de Ubá (Zona da Mata). Além da redução dos impactos causados pela atividade minerária, o documento traz também como prioridade a exigência de que a Copasa faça manutenção regular da sua rede de distribuição, a fim de evitar o desperdício de água potável, e o monitoramento das outorgas já concedidas na bacia do Paraíba do Sul, visando à segurança hídrica e ao desenvolvimento econômico sustentável da região.

Em Poços de Caldas (Sul de Minas), os participantes do evento elaboraram documento com 16 propostas. São itens prioritários a garantia de recursos para a universalização do saneamento básico; a integração da concessão de licenças ambientais e de outorgas no âmbito dos órgãos licenciadores e encaminhamento das autorizações de grande porte à análise dos comitês de bacias; o repasse de 50% da Compensação Financeira por Exploração Minerária (Cfem) para um fundo de recuperação ambiental de bacias hidrográficas e universalização do saneamento; e o fomento, por meio de lei, de práticas da agricultura de precisão e de tecnologias sociais de convivência com a seca.

Os desafios relativos aos Rios das Velhas e Paraopeba receberam destaque no encontro regional de Belo Horizonte, cujo documento contabiliza 20 novas propostas. Dentre elas, destaca-se a preservação integral dos aquíferos da Serra do Gandarela, acrescentando à área do parque nacional de mesmo nome todas as áreas de recarga e as cabeceiras das bacias do Ribeirão da Prata, dos Rios São João e Conceição. Foram ainda propostas a definição de dotação orçamentária para o desenvolvimento de ações de redução do desmatamento, recuperação de áreas degradadas e conservação de áreas naturais; e a criação de câmara temática ou conselho consultivo para propor modelo de transposição de minério sem uso de água.

A regulamentação do plantio de eucalipto, com estabelecimento de limite de 250 metros de distância dos córregos e nascentes; a revisão tarifária das concessionárias de distribuição de água, com o objetivo de penalizar aquelas que apresentam ineficiências operacionais e administrativas e prevenir eventuais falhas e desperdícios; a obrigatoriedade, por meio de lei estadual, do cercamento de nascentes pelos municípios; e a revogação do decreto que declara a utilidade pública de terras para a implementação de mineroduto no Vale do Jequitinhonha compõem a lista das 36 novas propostas elaboradas ao longo do encontro regional de Araçuaí (Vale do Jequitinhonha).

Já em Paracatu (Noroeste de Minas), foram apresentadas 17 proposições. A recuperação de estradas rurais, a construção de barragens nas cabeceiras dos rios e o cercamento de nascentes são algumas das propostas priorizadas pela região. Os participantes desse encontro também solicitaram a proibição de novos minerodutos no Estado. Destaque ainda para a sugestão que prevê o estabelecimento de mecanismos, no processo de concessão de outorgas, para que os projetos que contemplem a agricultura familiar e a produção sustentável de alimentos tenham preferência.

A criação de lei que torne obrigatório, tanto para edificações residenciais quanto industriais, um projeto para a instalação de sistema de calhas, cisternas e manilhas, com brita e areia, para possibilitar a infiltração da água no solo, visando à recarga da água subterrânea, foi apresentada no último encontro regional, realizado em Uberlândia (Triângulo Mineiro), onde foi formulado documento com 19 novas propostas.

Confira a entrevista:

ALMGComo relator da ONU, o senhor já realizou missões para apurar violações de direitos humanos relacionamentos à falta de água e ao saneamento básico?
L.H. – Já realizamos uma missão no Tadjiquistão, na Ásia Central. A escolha se deu, obviamente, pelo histórico de precariedade, pelos altos índices de doenças relacionadas ao acesso à água e ao esgotamento sanitário, mas também em função da localização geográfica. Ainda não haviam sido feitas missões nessa região. A próxima será em Botswana, no Sul da África, com os mesmos objetivos.

ALMGEm relação ao Brasil, o Plano Nacional de Saneamento Básico de 2013 estima que 40% da população não tem acesso a abastecimento contínuo e seguro; e que 60% não dispõe de esgotamento sanitário. Qual a perspectiva de universalizar esses serviços no País?
L.H. – O Plansab, como é conhecido o Plano Nacional de Saneamento Básico, cobre um período de 20 anos. Ele estabeleceu diretrizes, metas e ações até 2033. Existem diferentes indicadores, e as previsões podem divergir conforme estejam relacionadas a áreas urbanas ou rurais. De acordo com o plano, até 2023, o abastecimento de água potável em áreas urbanas será universalizado, ou seja, 100% dos domicílios serão atendidos. Já nas áreas rurais, no mesmo período, esse percentual ficará em torno de 70%. Em relação ao esgotamento sanitário, a meta geral, para domicílios de áreas urbanas e rurais, é chegar a uma cobertura de 92%. Alcançar esses números vai depender da estabilidade das políticas públicas do setor, que devem ser tratadas como políticas de Estado, e não de governo.

ALMG - O atual cenário de crise no Brasil poderia ser evitado se houvesse melhor planejamento dos recursos hídricos?
L.H. – A crise no abastecimento público chegou ao Sudeste do País, mas, em parte do Nordeste, por exemplo, o problema já se tornou crônico. Situações de escassez ou inundações requerem das autoridades a elaboração de planos de contingência capazes de minimizar os impactos. Além disso, é preciso incluir nos planejamentos a gestão dos períodos de estiagem.

ALMGQue medidas podem ser adotadas a fim de obter maior segurança hídrica?
L.H. – Práticas que buscam a conservação dos mananciais, a priorização do consumo humano em detrimento dos demais, a diversificação das fontes (como o uso de águas subterrâneas), a implementação de mecanismos para reter água da chuva, a maior eficiência do sistema de distribuição para evitar o desperdício, que, hoje, chega a uma perda de cerca de 40% dos recursos, dentre outras.

ALMGDurante as etapas anteriores do Seminário Águas de Minas III, membros dos comitês de bacias hidrográficas enumeraram alguns problemas enfrentados: despejo de esgoto bruto nos rios, conflitos por água, captações de água clandestinas, os impactos de minerodutos, as dificuldades financeiras e estruturais. Diante desse quadro, que ação deveria ser priorizada pelos comitês?
L.H. – É difícil destacar uma prioridade, sobretudo se levarmos em conta as diferentes realidades encontradas. Mas penso que as medidas de preservação dos recursos merecem maior atenção. Devem-se evitar lançamentos de esgoto sem tratamento e outros poluentes. Os rios têm capacidade de se recuperarem até mesmo sem intervenção humana, no entanto, se a fonte de poluição não cessar, isso não será possível.

Programação - Além da palestra magna, serão realizados também, entre os dias 30 de setembro e 2 de outubro, painéis temáticos, formação de grupos de trabalho para elaboração de propostas, votação daquelas consideradas prioritárias e que vão compor o relatório final do seminário. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas até as 12 horas do dia 29 de setembro pelo Portal da ALMG ou presencialmente no Centro de Atendimento ao Cidadão – CAC (Rua Rodrigues Caldas, 30, Santo Agostinho).