Alunos do Curso de Formação de Agentes Populares de Educação Ambiental na Agricultura Familiar têm aulas sobre o módulo Participação Comunitária e Vida Política
Raquel Rodrigues diz que o curso vai ajudá-la a enfrentar problemas da comunidade
Aline da Silva conta que aprendeu a importância da união dos moradores
Escassez de água é apontada pela aluna do curso Daiana Oliveira como um problema de sua comunidade
A instrutora do curso Paula Vanucci é antropóloga; ela acredita que todo o processo será transformador
O Cidadania Ribeirinha é focado em cidades da Bacia do São Francisco com baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH)

Cidadania Ribeirinha muda rotina de moradores do Norte de MG

Curso sobre educação ambiental na agricultura familiar movimenta comunidades ribeirinhas do São Francisco.

26/08/2015 - 09:00

Desde agosto, a estudante Raquel Rodrigues, 18, precisa acordar mais cedo para dar conta das tarefas de casa, antes de ir para as aulas do Curso de Formação de Agentes Populares de Educação Ambiental na Agricultura Familiar. A atividade, iniciada na segunda-feira (17/8/15), marca o início da segunda edição do Cidadania Ribeirinha, projeto da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) financiado pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA).

O Cidadania Ribeirinha é focado em municípios pertencentes à Bacia do São Francisco que apresentam baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). O sucesso da primeira edição ajudou que o projeto fosse um dos 19 selecionados entre 240 inscritos em todo o País para receber recursos do FNMA, repassados por meio do Banco do Brasil.

O curso é a primeira grande ação do projeto nas comunidades rurais ribeirinhas do Norte de Minas selecionadas para esta nova edição: Bom Jardim da Prata, Retiro e Jiboia, em São Francisco; e Várzea Bonita, São Joaquim e Riacho da Cruz, em Januária. O objetivo é transmitir ou sistematizar novos conhecimentos, bem como valorizar saberes tradicionais e formar multiplicadores dessas informações, na forma de lideranças já conhecidas ou novos líderes que vão fomentar um “empoderamento” dessas comunidades.

Moradora de São Francisco de Assis, povoado próximo da comunidade quilombola Bom Jardim da Prata, em São Francisco, Raquel Rodrigues conta que gostou de ter a rotina alterada. “Antes, depois que arrumava a casa com minha mãe, ficava à toa esperando a hora de ir para a escola. Agora, preencho esse tempo com o curso. Estou aprendendo muitas coisas e aprofundando mais sobre a questão da cidadania, além de conhecer novas formas de se fazer política”, afirma.

Ao todo, serão 360 alunos das seis comunidades, que terão aulas até o dia 5 de dezembro. A atividade integra uma série de ações estratégicas que têm como objetivo contribuir para a revitalização da Bacia Hidrográfica do São Francisco, a redução da pobreza e da desigualdade nas comunidades ribeirinhas e a proteção do patrimônio cultural são-franciscano. As aulas estão sendo ministradas em escolas estaduais e associações comunitárias, tendo como público prioritário agricultores familiares de 16 a 29 anos.

Participação Comunitária – As aulas do curso foram divididas nos seguintes módulos: Participação Comunitária e Vida Política; Meio Ambiente, Cultura e Modos de Vida; Patrimônio Cultural; Agroecologia; Desenvolvimento Sustentável; Políticas Públicas; e Práticas Rurais Sustentáveis. Cada módulo é dado em duas semanas.

A estudante Raquel Rodrigues está, atualmente, cursando Participação Comunitária e Vida Política. Ela diz que, com as aulas, está percebendo o quanto é importante “fazer as coisas em grupo e conhecer as necessidades do outro na comunidade”. Ela acredita que a atividade será importante para ajudar ela e toda a comunidade onde vive a enfrentar os problemas locais. “As aulas nos ajudarão a pensar meios de superar a falta de água na região”, exemplifica.

Outra colega de turma, a dona de casa Aline da Silva, 25, do povoado quilombola Pinhãozeiro, próximo a Bom Jardim da Prata, também acredita que a escassez de água seja um problema a ser enfrentado. “O córrego Bom Jardim, que passa em nosso povoado, secou. O curso vai ajudar a gente a fazer campanhas de conscientização para acabar com o assoreamento”, afirma.

Para Aline, a atividade aborda temas que levam a população a refletir sobre a melhoria do local onde vive. “Estou vendo o tanto que é importante a gente se unir para o desenvolvimento da nossa região”, pontua.

'Curso contribui para criar sentidos para seguir vivendo aqui'

Para a estudante Daiana de Brito Oliveira, 17, participar do curso está sendo “muito importante”. Ela também está fazendo o módulo Participação Comunitária e Vida Política, mas em outra comunidade: Riacho da Cruz, em Januária. “A atividade vai me possibilitar criar sentidos para eu continuar a viver aqui”, acredita. Daiana diz gostar muito de sua comunidade. “Mas os jovens acabam saindo daqui para tentar uma vida melhor fora”, lamenta. Ela conta que, por falta de oportunidade, muitos acabam partindo para São Paulo, tendo que “se virar” em subempregos.

Daiana diz acreditar que o curso está contribuindo para promover um sentimento de coletividade maior entre as pessoas, o que vai ajudar a 'fixar' a população na comunidade. “Nós, como comunidade quilombola tradicional, temos muitas potencialidades, o que é sempre destacado nas aulas”, afirma. Para ela, os principais problemas do local também estão relacionados a questões hídricas e à falta de saneamento básico. A estudante conta que muitas vezes falta água devido ao gasto excessivo da população. “O curso pode sensibilizar e dar mais consciência ambiental para todos nós”, acredita.

A estudante de Riacho da Cruz diz, ainda, que o aprendizado que tiver com as aulas será repartido com toda a comunidade. “O que eu aprender, vou passar para os moradores, pois, se eles conseguem fazer do local um lugar melhor para viver, melhor também será para mim, que vivo aqui com eles”, ressalta. Sobre o conteúdo das aulas que já teve, ela diz ter aprendido conceitos de política, democracia e cidadania. “Vivemos aqui muito à mercê dos nossos direitos. E, para termos conquistas, temos que ter consciência de que nossa vida é política praticada a todo momento”, enfatiza.

O curso conta com 12 turmas, duas por comunidade, com 30 alunos cada uma. São três horas de aula por dia, três vezes por semana, totalizando 144 horas-aula ao longo de todo o segundo semestre deste ano. Três comunidades estão tendo aulas na segunda, terça e quarta-feira, e as outras três na quinta, sexta e sábado, o que tem permitido o deslocamento dos instrutores entre as comunidades.

Instrutores – No total, são 21 instrutores responsáveis pelo curso (três por módulo). “Temos profissionais com mestrado e doutorado, especialistas nas suas áreas de conhecimento, mas também temos músicos, atores, artistas plásticos, professores de dança e ativistas da região, todas pessoas experientes em lidar em regiões de carência ou vulnerabilidade social”, informa o coordenador do Cidadania Ribeirinha, Márcio Santos.

A antropóloga Paula Vanucci é uma das responsáveis pelo módulo Participação Comunitária e Vida Política nas comunidades de Bom Jardim da Prata e de Jiboia (São Francisco). “A ideia é pensar junto com a população ribeirinha ações que possam ser desenvolvidas coletivamente para a melhoria da qualidade de vida das pessoas”, conta. Ela diz que suas aulas estão focadas no conceito do que é ser comunitário, algo que, em sua opinião, as pessoas não param para pensar no dia a dia. “Junto com esse conceito, discutimos vários outros, como política, que o senso comum costuma associá-lo apenas ao sistema eleitoral. As pessoas não costumam fazer uma reflexão sobre elas mesmas como seres políticos que atuam na transformação de seu meio”, afirma.

Sustentabilidade, cidadania e mobilização social são outros conceitos abordados nas aulas da antropóloga. “Trabalhamos esses eixos básicos sempre com a ideia de que é preciso fortalecer a atitude cidadã e comunitária no enfrentamento de problemas e na elaboração de projetos sustentáveis para essas comunidades”, conta. Para Paula Vanucci, é preciso cobrar participação comunitária para haver transformação. “Como sonhar e como executar o que sonhamos? Esse é um módulo que problematiza todas essas questões para chegarmos ao final com resultados”, acredita.

A instrutora conta, também, que as aulas não ocorrem apenas de modo tradicional, dentro de sala de aula. “Trabalhamos muito com dinâmicas de grupo e com técnicas do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal (dramaturgo, diretor de teatro e ensaísta brasileiro)”, diz. Paula acredita que sejam necessárias práticas e exercícios dentro e fora da sala de aula, uma vez que as comunidades ficam um pouco recuadas diante do outro desconhecido. “Ainda trabalho com eles um 'caderno de campo', onde eles anotam o dia a dia em comunidade. Peço que prestem atenção para o lugar onde estão e que escrevam sobre os cheiros, as paisagens, as pessoas, os animais. Pego essas anotações e as uso como temas de debate”, explica.

Paula Vanucci acredita que todo esse processo será transformador. “Na turma, temos muitas donas de casa e jovens que quase nunca têm oportunidade para discutir assuntos do cotidiano. Começar a pensar sobre isso já é um processo transformador, porque novas ideias podem surgir a partir de conceitos que já eram dados como certos e fixos”, acredita. Para ela, o sentido comunitário que a todo momento as aulas abordam possibilitará uma transformação concreta. “Se conseguirmos maior união na comunidade e um debate interno sobre temas de interesse local, já será um passo para que novas atitudes sejam tomadas para transformar o ambiente. Acho que esse será o grande resultado do projeto”, conclui.

Atividade deve beneficiar mais de 25 mil pessoas

Ao término da segunda edição do Cidadania Ribeirinha, devem ser indiretamente beneficiadas mais de 25 mil pessoas, que, numericamente, constituem a população total das seis comunidades atendidas, não computadas as pessoas residentes nas localidades menores aglutinadas à iniciativa. Para se ter uma ideia do alcance do projeto, essa parcela corresponde a 21% da população total dos municípios de Januária e São Francisco.

O coordenador do Cidadania Ribeirinha, Márcio Santos, explica que o projeto não se limita às comunidades onde ocorrem os cursos. “As atividades atingem várias microcomunidades e povoados ao redor das sedes. Nosso objetivo, portanto, é também fazer uma interação entre essas localidades, criando uma rede como forma de contribuir para a solução dos problemas comuns”, afirma.

Curso vai se desdobrar em outras duas linhas de ação

O Curso de Formação de Agentes Populares de Educação Ambiental na Agricultura Familiar ainda vai se desdobrar em uma segunda linha de ação do Cidadania Ribeirinha, que prevê 12 projetos comunitários estruturadores de educação ambiental nas comunidades rurais contempladas, cada um deles sob a responsabilidade de uma das turmas do curso.

As próprias comunidades é que vão escolher o que será feito, sempre com foco na geração de renda e na preservação do patrimônio cultural e ambiental. As possibilidades são muitas, como uma estação de piscicultura, uma horta comunitária ou a captação de energia solar, iniciativas que poderão se beneficiar dos recursos do FNMA para se tornar realidade já em 2016. A previsão é de que cada projeto conte com recursos de 15 mil a 20 mil reais.

Por fim, a terceira linha de ação do Cidadania Ribeirinha prevê ainda a implementação de campanhas em defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em cada comunidade, contando sempre com a participação das lideranças capacitadas ao longo do curso.

Primeira edição – Na primeira edição do Cidadania Ribeirinha, iniciada em 2011, os municípios beneficiados foram Itacarambi, Manga, Matias Cardoso e Pedras de Maria da Cruz, todos no Norte de Minas. O projeto chegou ao final de 2014 com quatro módulos do curso de desenvolvimento sustentável concluídos. Foram organizados ainda quatro seminários temáticos e dezenas de ações comunitárias, sempre com o envolvimento de parceiros institucionais e a mobilização de lideranças, de forma a garantir o efeito multiplicador das ações.

Foram mais de mil inscritos no curso de desenvolvimento sustentável oferecido pelo projeto entre 2012 e 2014. Além desse público, foi organizado um programa de capacitação de professores da rede pública em empreendedorismo social, executado em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) ministrou as aulas do último módulo do curso, voltadas para a capacitação em atividades rurais sustentáveis.

Aliás, um dos principais trunfos com que o Cidadania Ribeirinha conta são justamente os parceiros mobilizados para o apoio à execução das ações. São órgãos como o Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), baseado em Montes Claros; a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais e, ainda, organizações não governamentais voltadas para a pesquisa e a ação social na região, como o Centro de Agricultura Alternativa, a Comissão Pastoral da Terra, a Cáritas Diocesana, o Instituto Biotrópicos e o Instituto Rosa e Sertão.

E, além de parceiros locais, como as prefeituras dos municípios contemplados, têm contribuído para o projeto instituições como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha), Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-MG).

Esta é a primeira reportagem de uma série especial sobre o início da segunda edição do Cidadania Ribeirinha. A próxima será publicada nesta sexta-feira (28/8).