Pessoas com doenças raras cobram mais apoio do SUS
Audiência na ALMG discute dificuldades a que são submetidos pacientes e define criação de grupo de trabalho.
05/08/2015 - 20:08 - Atualizado em 06/08/2015 - 11:29“Quanto vocês gastariam pela vida de um filho? Afinal, qualquer um pode ter um filho com uma doença rara. A vida não tem preço. O que precisa ser entendido é que somos todos raros, independentemente de ter uma doença rara ou não”. Essas declarações, em tom de desabafo, são de Maria Juliana de Oliveira Silva, mãe de uma criança que morreu vítima de doença rara aos seis anos.
Delegada e coordenadora da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (Afag) de Minas Gerais, além de presidente da ONG Menkes Brasil, ela foi uma das participantes da audiência pública que a Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realizou na tarde desta quarta-feira (5/8/15), para debater os problemas enfrentados, no Estado, por pessoas com doenças raras e seus familiares. A reunião atendeu a requerimento dos deputados Antônio Jorge (PPS) e Fred Costa (PEN).
Os grandes desafios no enfrentamento do problema são uma maior disseminação de informações que permitam diagnósticos mais rápidos e precisos dessas doenças raras, a homogeneização das práticas médicas e, sobretudo, o acesso a serviços de referência, com qualidade assistencial, em todo o Estado, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Entre as inúmeras dificuldades, muitos testes para diagnosticar essas doenças precisam inclusive ser enviados ao exterior.
Queixas assim dominaram os relatos emocionados feitos por pessoas com doenças raras, seus familiares, pesquisadores, profissionais e gestores de saúde durante o debate. “Doença rara” é um conceito que se aplica às cerca de oito mil tipos de doenças com cinco casos diagnosticados para cada grupo de dez mil habitantes, ou um a cada 2.000, atingindo, segundo estimativas, 5% da população mundial. Cerca de 80% delas são de origem genética. Estima-se que existem 350 milhões de pessoas com doenças raras em todo o planeta e de 12 a 15 milhões no Brasil. Por essas contas, podem existir em Minas mais de um milhão de pacientes em potencial.
O problema tem uma data para ser lembrada, 29 de fevereiro, dia que existe de quatro em quatro anos, em anos bissextos. Quando não há 29 de fevereiro no calendário, a data é lembrada na véspera. Pode-se dizer que raras também são as vitórias obtidas no enfrentamento do problema. Uma delas foi a edição da Portaria Ministerial 199, de 2014, que instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. O problema é que muitos itens previstos nela ainda não passam de ficção.
Números - No Brasil há apenas 156 médicos geneticistas, enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza um para cada 100 mil habitantes. Há uma defasagem de cerca de três mil profissionais deste tipo. Em Minas são apenas 20 médicos geneticistas, ou um profissional para cada grupo de 56 mil pessoas potencialmente portadoras de uma doença desse tipo.
Mas essa triste realidade não desanima Maria Juliana de Oliveira Silva, cujo filho faleceu vítima da doença de Menkes, que provoca a degeneração do sistema nervoso. “Apesar de ainda estar no papel, a portaria, sem dúvida, foi uma conquista. A morte de meu filho me fez decidir lutar por essa causa. Por isso, quando qualquer um de nós for bater nas portas das secretarias de saúde, que se apresente como representante das doenças raras”, afirmou.
“Quando meu filho morreu, a missão dele terminou e a minha começou. O legado que eu quero deixar com meu trabalho é por aqueles que nem nasceram ainda e serão diagnosticados com uma doença rara. Eu não desanimo com as dificuldades. Afinal, a maior dor que um ser humano pode sentir eu já senti, que é a morte de um filho”, apontou.
Luta é por direito à saúde como prioridade orçamentária
A presidente da Afag, Maria Cecilia Jorge Branco de Oliveira, reforçou o apelo pela garantia, na prática, dos direitos já garantidos na legislação brasileira às pessoas com doenças raras. “Precisamos assegurar, na prática, o direito à saúde como prioridade orçamentária. Afinal, não há como falarmos em outros direitos se não estivermos vivos, com saúde. O triste é que a falha de nossos governantes custa milhares de vidas”, criticou.
Ela ressaltou a grande interferência do Poder Legislativo, em todos as esferas de governo, para alcançar melhoria nos tratamentos de saúde, esforço este que não tem se revertido no aprimoramento dos serviços. Em uma apresentação, ela mostrou os gastos crescentes com medicamentos pelo Governo Federal desde 1999, enquanto os gastos com os chamados medicamentos excepcionais, usados nos casos de doenças raras, caiu.
“Em 2014 eles representaram 0,66% dos gastos totais, mas, em 2003, esse percentual era de 1,67%. Esse tipo de paciente, além de ter sido premiado com uma doença rara, ainda é culpado por ser causador de um gasto excessivo, pois seus remédios são mais caros”, ironizou Maria Cecilia. Em tom crítico, ela relacionou a efetividade desse tipo de gasto da União com os montantes desviados em escândalos de corrupção ou com a preparação para a Copa do Mundo.
“Só se desvia o que tem. Então não dá para falar que falta dinheiro para a saúde. A judicialização é só um reflexo desse tipo de fragilidade”, afirmou, ao lembrar os pacientes que são obrigados a acionar a Justiça para garantir o tratamento de uma doença rara. “Esses medicamentos, na maioria das vezes, não curam, mas dão mais dignidade para as pessoas”, acrescentou. A Afag tem um número de telefone para atender pacientes com doenças raras e seus familiares: 0800-777-2902.
Pacientes - Entre as pessoas com doenças raras, a presidente da Associação Mineira de Parentes, Amigos e Portadores de Epidermólise Bolhosa (Ampapeb), Cláudia Maria Portela Eleutério, também cobrou mais apoio das autoridades. Portadora da doença que provoca bolhas e feridas na pele, mucosas e órgãos internos, ela disse que a situação tem melhorado, mas não no ritmo necessário.
“Quando eu nasci, ninguém sabia o que eu tinha. Hoje, sobretudo no diagnóstico precoce, estamos melhor. Montamos a associação, que já é referência na disseminação de informações e é justamente a informação a chave para evitar complicações. Ainda sonhamos com a cura, mas o tratamento é o que garante uma melhor qualidade de vida”, apontou.
Já a presidente da Associação Mineira de Apoio aos Portadores de Esclerose Múltipla (Amapem), Aline Esteves Pacheco, não é tão otimista. “Só quando fui diagnosticada é que fui descobrir que essa doença não é tão rara assim. Precisamos saber onde esses doentes estão e os serviços de saúde não sabem nem se preocupam com isso. As consultas com especialistas não são regionalizadas, o que leva a grandes deslocamentos, só para citar algumas dificuldades”, afirmou.
Especialistas cobram efetividade no cumprimento das leis
O debate da Comissão de Saúde também reuniu vários especialistas. A geneticista do Departamento de Biologia Geral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Maria Raquel Santos Carvalho, elogiou o advento da Portaria 199, mas ressaltou a distância ainda existente entre o que o texto legal prevê e a realidade brasileira.
“Atualmente, em Minas, os serviços de referência existentes são apenas o Hospital das Clínicas e o Hospital Sarah Kubitschek. A Santa Casa e algumas universidades do interior também estão se articulando. A maior parte dos pacientes ainda é atendida por especialistas interessados, o que dá a ideia do tamanho do problema. São milhares de tipos de doenças e poucas têm kits de diagnóstico automatizado”, destacou.
O professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Marcos José Burle de Aguiar, que trabalha com doenças raras há 33 anos, fez a defesa da valorização de outros profissionais da equipe multidisciplinar, segundo ele muito mal remunerados. “Não precisamos elaborar novas leis, que já nascem mortas. A Assembleia tem papel importante para que as leis que já existem funcionem. Não adianta falar mal do governo, precisamos é exigir nossos direitos”, defendeu.
Curar ou tratar - O chefe do Setor de Neurologia do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Leopoldo Antônio Pires, lembrou a importância do apoio aos familiares, que padecem junto com o paciente. “Curar é um verbo muito pouco usado na medicina. Na maioria desses casos, a medicina se resume a tratar. Mas nenhuma doença é rara para quem a tem, é rara apenas para a estatística”, advertiu.
Carlos Augusto de Albuquerque Damasceno, também do Setor de Neurologia do Hospital Universitário da UFJF, criticou a ação governamental na atualização de protocolos e garantia de acesso a medicamentos. “Medicamentos que já são usados nos Estados Unidos, Canadá e Europa há cinco ou seis anos vão chegar à rede pública daqui a outros cinco ou seis anos. E estamos falando de doenças nas quais o tempo perdido significa também neurônios perdidos e sequelas para os pacientes”, avaliou.
SES - A coordenadora da Rede Cegonha da Secretaria de Estado da Saúde (SES), Ana Maria Cardoso, garantiu que, neste segundo semestre, estará em curso um esforço concentrado do Executivo para reforçar a atenção especializada e os centros de referência. “A Portaria 199 traz avanços, com o estabelecimento de competências em diversas esferas. Ela também organiza melhor a atenção aos pacientes, mas sabemos que ainda faltam algumas coisas para qualificar o atendimento e garantir o diagnóstico precoce. Garantir a saúde é prover o cuidado adequado no tempo oportuno”, definiu.
Deputados defendem mais recursos para a saúde
O presidente da Comissão de Saúde, deputado Arlen Santiago (PTB), apontou a concentração de recursos na União, que, por sua vez, tem diminuído os investimentos no SUS, sobrecarregando Estados e municípios. “A falta de financiamento adequado torna a situação cada vez mais complexa. O Governo Federal foge cada vez mais das suas obrigações, tendo contribuído com 45% dos recursos do SUS em 2014, sendo que esse percentual já foi de 60% há alguns anos”, exemplificou, cobrando o reajuste da tabela do SUS e lembrando a penúria dos hospitais filantrópicos.
“O dinheiro existe, mas não está indo para a saúde”, completou, apontando o corte de cerca de R$ 18 bilhões em investimentos federais na saúde previstos para 2015. Ao longo da reunião, por sugestão do parlamentar, foi decidida a montagem de um grupo de trabalho para tratar do problema, que deve fazer sua primeira reunião já na próxima semana.
O deputado Antônio Jorge (PPS) também cobrou mais recursos para a saúde, sobretudo para as doenças raras. “Alguns autores classificam essas doenças como catastróficas, pois impõem um desafio econômico e social por conta dos arranjos familiares para dar um melhor cuidado ao paciente. Muitos desses pacientes não são sequer percebidos pelos gestores de saúde, a não ser quando chegam pelo viés da judicialização”, disse.
Jp á o deputado Geraldo Pimenta (PCdoB) citou o escritor Guimarães Rosa ao elogiar a abnegação dos familiares no atendimento às pessoas com doenças raras. "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, e o amor com certeza não falta aqui. Precisamos trabalhar juntos e pressionar mais o Estado, os municípios e o Governo Federal por soluções. A política para atendimento a pessoas com doenças raras parece já estar bem desenhada, mas, sem dúvidas, precisamos de mais investimentos”, afirmou.
“Não é questão de orientação politica, mas de sensibilidade dos governantes. Precisamos de pressão popular, pois é assim que as coisas acontecem neste País”, recomendou o deputado Glaycon Franco (PTN).
Por fim, o deputado Doutor Jean Freire (PT) cobrou a formulação de propostas objetivas para melhorar a rotina das pessoas com doenças raras. “Deu para ver que a relação médico/paciente é bem mais forte no caso das doenças raras. Um maior financiamento, nesse caso, é necessário, sim, mas não resolve tudo. Temos que olhar a questão da gestão”, pontuou.
Requerimentos - Na reunião foram aprovados ainda quatro requerimentos para a realização de audiências públicas da Comissão de Saúde. Requerimento do deputado Iran Barbosa (PMDB) prevê debate sobre ajustes no serviço prestado pela Unidade de Pronto-Atendimento de Justinópolis, em Ribeirão das Neves (RMBH). Já o deputado Fred Costa quer debater o atendimento à criança com déficit de atenção e transtorno de aprendizagem.
O deputado Dalmo Ribeiro Silva (PSDB) propôs debate, com conjunto com a Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia, para discutir a implantação de curso de Medicina em Poços de Caldas (Sul de Minas). E o deputado Arlen Santiago quer uma audiência pública, em conjunto com a Comissão de Direitos Humanos, na região de Vargem Grande do Rio Pardo (Norte de Minas), para discutir a saúde indígena entre os xacriabás.