Especialistas rebatem dados errados sobre tráfico de pessoas
Informações sobre o crime pautadas no pânico ou preconceito podem impedir políticas de proteção às vítimas.
08/05/2014 - 18:59Com a proximidade da Copa do Mundo no Brasil, cresce a preocupação com o risco do aumento da violência e de crimes como o tráfico de pessoas. Aumentam, também, os boatos e a disseminação de informações baseadas no pânico e fanatismo. O combate ao mito de que eventos esportivos de grandes proporções favorecem esse tipo de crime foi defendido pela consultora da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Márcia Anita Sprande, na tarde desta quinta-feira (8/5/14), no Ciclo de Debates Enfrentamento do Tráfico de Pessoas, realizado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Ela participou do painel “Tráfico de pessoas e algumas de suas modalidades: exploração sexual, trabalho escravo e adoção ilegal”.
Especialista em migrações internacionais e tráfico de seres humanos e integrante do grupo de trabalho em Migrações Internacionais da Associação Brasileira de Antropologia, Márcia Sprande afirmou que estudos realizados durante competições internacionais realizadas em outros países mostraram que em muitos casos houve até redução no número de ocorrências. Segundo ela, a divulgação de que 40 mil prostitutas trabalharam forçadas durante a Copa da Alemanha, em 2006, nunca se confirmou. Ao contrário, diminuíram os casos de prostituição em Hamburgo, por exemplo, onde os bordéis foram fechados.
“Temos que valorizar os fatos, e não os estereótipos”, alertou. Conforme a especialista, o preconceito contra profissionais do sexo pode ampliar a vulnerabilidade desse segmento e prejudicar a criação de políticas e medidas de proteção. O uso inadequado das informações, na opinião da especialista, também pode redundar na utilização de recursos que poderiam ser aplicados em outras áreas. Ela provocou a plateia a refletir sobre a disseminação desses rumores que interessariam a grupos antiprostituição e antimigração, alguns veículos de imprensa e políticos. “Precisamos identificar os grupos que podem ter seus direitos violados por empresas envolvidas na produção da Copa: imigrantes usados na construção civil, atletas menores de idade, trabalhadores domésticos, operários de confecções etc.”.
Mitos influenciam compreensão do crime
O coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Análogo ao de Escravos da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, Marcelo Gonçalves Campos, concordou com a consultora da OIT e completou que os mitos acabam se reproduzindo na realidade e influenciando a forma de se compreender o tráfico de pessoas. Ele disse que o crime tem sido observado mais pelos focos do gênero – considerando mais as mulheres – e comportamental, limitando-se à exploração sexual.
Campos lembrou que a legislação brasileira sobre o tráfico de pessoas refere-se apenas à prostituição. As demais modalidades estão distribuídas por outros dispositivos do Código Penal, como, por exemplo, o trabalho análogo ao escravo, que é abordado no artigo 149. E alertou que a situação no Brasil exige mais atenção. Segundo ele, a exploração do trabalho vai além do mito de que a escravidão é apenas de negros submetidos a prisão e espancamento. Atinge pobres, independente da cor, e está presente tanto no meio rural quanto no urbano. “Ocorre em Belo Horizonte, onde já identificamos na construção civil, em supermercado e outras empresas”, exemplificou. Em sua análise, esses casos passaram invisíveis pela sociedade, que muitas vezes prefere não enxergá-los para evitar tomar um posicionamento.
Ele explicou que o trabalho escravo pode ser identificado por quatro hipóteses: trabalho forçado, seja por pressão física ou psicológica; servidão, nos casos em que trabalhadores são retidos por dívidas contraídas com ao patrão; trabalho degradante, sem condições mínimas de dignidade; e jornada exaustiva.
Marcelo Campos também advertiu que há um exagero nas estatísticas, que são feitas com dados poucos confiáveis. Os números oficiais dão conta de que já foram identificadas 50 mil vítimas submetidas a trabalho escravo no Brasil nos últimos 15 anos. “Traficar uma pessoa é roubar dela toda condição do ser humano”, lamentou.
Disque-denúncia registra aumento de ocorrências
O coordenador da Defensoria Especializada da Infância e Juventude Cível, Wellerson Eduardo da Silva Corrêa, chamou a atenção para a necessidade de se diferenciar tráfico de contrabando de pessoas. O último implica a passagem de forma ilegal pelas fronteiras, e o tráfico pode ser dentro do próprio país. Ele ainda contou que o Disque 100, que recebe denúncias, tem demonstrado aumento nas ocorrências de tráfico de pessoas: em 2012, foram registradas 100 e, em 2013, foram 186.
Corrêa afirmou que as maiores vítimas desse crime são as mulheres, e a principal forma de exploração infantil é para fins sexuais. Em segundo lugar, está o tráfico de órgãos; em terceiro, o casamento para servidão; em quarto, adoção ilegal; e na quinta posição, a exploração do trabalho de crianças, muitas delas submetidas à mendicância. No Brasil, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste lideram o tráfico de crianças, especialmente para o turismo sexual. As cidades de Recife, Fortaleza, Natal e Salvador são as mais procuradas. Na região Sudeste, as ocorrências são registradas especialmente nas rodovias. Já o contrabando tem ocorrido sobretudo nas fronteiras amazônicas, com destaque para Guiana Francesa, Colômbia e Venezuela.
MG tem pioneirismo em campanhas educativas
Embora Minas Gerais ocupe o segundo lugar no País em ocorrências de tráfico de pessoas, o Estado foi o primeiro a implantar campanhas educativas para combater o crime. A ponderação foi apresentada pelo assessor da presidência do Conselho Nacional de Justiça, Luiz Carlos Rezende e Santos.
Ele também falou sobre a importância da aprovação do Projeto de Lei do Senado 479/12, que trata do tráfico de pessoas, ampliando a legislação atual. Segundo Luiz Carlos Santos, a proposição busca proteger as vítimas em território nacional e os brasileiros que são explorados no exterior. Além disso, apresenta diretrizes que preveem um pacto federativo de combate ao tráfico de pessoas, a colaboração entre organizações governamentais e não governamentais e a realização de campanhas educativas.
Luiz Carlos Santos lembrou que o Código Penal Brasileiro, desde a década de 1940, já prevê a criminalização do tráfico de pessoas, inicialmente de mulheres exploradas para prostituição. Com a evolução da legislação brasileira, hoje o artigo 231 ampliou essa criminalização para qualquer pessoa, mas ainda limitada à exploração sexual. As outras modalidades de tráfico são mencionadas em outros dispositivos, mas sem esta real conotação. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, trata de exposição pornográfica, exploração do trabalho infantil e adoção ilegal.