Relator da ONU se diz chocado com situação em Montes
Claros
"A escravidão não parou neste País. Falo isso não
só pela presença do trabalho escravo, mas pelo tratamento de segunda
classe dado a alguns trabalhadores". A constatação foi feita pelo
relator nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente da
Organização das Nações Unidas (ONU), Jean Pierre Leroy, durante
audiência pública de cinco horas das Comissões de Direitos Humanos e
Meio Ambiente e Recursos Naturais, da Assembléia Legislativa, nesta
sexta-feira (6/8/04). Jean Pierre prepara o relatório que será
entregue em novembro, baseado em visitas realizadas em todo o
Brasil. Em Minas ele percorreu 1.600 quilômetros em três dias de
viagem a Montes Claros, Curvelo, Rio Pardo de Minas e Cristália
(Usina de Irapé).
Francês, no Brasil desde 1971, quando desenvolveu
trabalhos na Amazônia, Jean Pierre Leroy esclareceu que o relatório
não é um documento oficial da ONU, mas mesmo tendo um peso
simbólico, mostra que é possível fazer parcerias entre sociedade
civil, entidades e organizações não governamentais. O relatório
pretende abordar as violações ao direito das pessoas ao meio
ambiente com qualidade, em todo o Brasil, e é uma das seis áreas de
atuação da ONU (direitos humanos, moradia, educação, saúde, meio
ambiente e emprego).
O relator, que é também coordenador executivo da
ong "Projeto Brasil Sustentável e Democrático", enfatizou que o
relatório não será um conjunto de queixas e lamentações divulgadas
ao mundo, mas pretende discutir alternativas de desenvolvimento com
autoridades e com os atingidos. Jean Pierre destacou a enorme
contribuição da audiência para o relatório, mas também para os
atingidos pelos problemas. Ele se disse "chocado", com o isolamento
de comunidades, "acuadas pelo eucalipto, sem acesso à água e a
nada". Jean Pierre disse que o problema é o direito à água,
"comprometida com as plantações de eucalipto". E culpou as
corporações transnacionais pelo modelo de desenvolvimento em todo o
mundo. "Estas corporações capturaram o neoliberalismo, já
ultrapassado como modelo, e o estão impondo ao mundo todo",
enfatizou.
Depoimentos de atingidos por barragens, eucalipto e
mineração
A participação de pessoas afetadas por problemas
ambientais emocionou os integrantes da platéia. Em mais de dez
depoimentos, representantes de atingidos por barragens, pela
monocultura do eucalipto e por mineradoras contaram suas
dificuldades como a falta de terra e água, as condições precárias de
moradia, falta de escolas e assistência médica.
Eucalipto - Relatos de
situações penosas foram feitos por representantes de quilombolas do
Gorutuba, região de Montes Claros, onde 600 famílias, com 5 mil
pessoas foram afugentadas para os grotões pelas empresas de
reflorestamento, quando alegam ser os legítimos donos de 45 mil
hectares de terras, hoje nas mãos de fazendeiros. Também ocuparam os
microfones representantes do Sindicato Rural dos Trabalhadores de
Curvelo, também acossados pelos eucaliptos e pelo uso indiscriminado
de agrotóxicos, próximo a nascentes e rios e representantes de
Vereda Funda, distrito de Rio Pardo de Minas, no Norte de Minas, que
também lutam pelo direito à água e à terra.
Barragens - Também
constando das visitas de Jean Pierre, com a ida à Usina de Irapé,
que atingirá sete municípios do Vale do Jequitinhonha e Norte de
Minas, os depoimentos dos atingidos por barragens mostraram relatos
de pressão sobre crianças e velhos, com famílias inteiras
desalojadas de suas terras, e com assentamentos que nunca saem do
papel. Assim foram as participações de representantes das barragens
de Irapé, da Fumaça, Pilar, Candonga, Murta, Capim Branco, Pedra do
Anta.
A representante da Comissão Pastoral da Terra e do
Movimento dos Atingidos por Barragens, Sônia Viana, informou que
segundo dados da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), há 104
projetos de barragens em andamento em Minas, com previsão de atingir
264 mil hectares de terras, 13 mil pessoas e secar 65 rios.
Mineração - Um extenso
dossiê foi entregue ao relator da ONU sobre os impactos ambientais
sobre o abastecimento de água de Belo Horizonte, pelo novo
empreendimento das Minerações Brasileiras Reunidas (MBR), a mina de
Capão Xavier. O autor é o engenheiro Ricardo Santiago, que está à
frente de ações judiciais contra a empresa, a Feam e o Estado.
Santiago disse que a nova mina está em cima de três nascentes,
responsáveis pelo abastecimento de 8% da população belo-horizontina,
ou 350 mil pessoas. Ele disse que uma das conseqüências mais graves
será o uso de uma "água podre" pela população em 20, 30 anos, pela
formação de um dos lagos da mina.
Índios - Descendentes de
duas nações indígenas também participaram da reunião, a primeira, os
Caxixós, de Martinho Campos, que há mais de 20 anos lutam pelo
reconhecimento de sua etnia e pelo direito a uma área de 8 mil
hectares. E a outra, os Pataxós, de Carmésia, que tem 300
descendentes, em 50 famílias, denunciando a quebra de sua
subsistência - baseada na exploração de sementes e fibras nativas
para o artesanato e a colheita do mel -, pela expansão das
plantações de eucalipto.
Igreja - Deram depoimentos
o frei Gilvander Luís Moreira, da CPT e do movimento Capão Xavier
Vivo, e o padre Antônio Claret, do Movimento dos Atingidos por
Barragens. Os dois defenderam ações mais concretas dos atingidos por
impactos ambientais, sendo que o primeiro chegou a defender um
mutirão para cortar os eucaliptos e cercar os caminhões de carvão de
Curvelo.
Órgãos públicos se defendem
Representantes da Procuradoria da República em
Minas, da Feam, do Instituto Estadual de Terras (Iter) e da
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Renováveis
defenderam-se das acusações de omissão. Para o representante do
Ministério Público Federal, Afrânio Nardi, o órgão vem cumprindo seu
papel, atuando em quase todos os casos denunciados na audiência até
mesmo com ações ajuizadas. "Só que esbarramos no Judiciário",
lamentou. O gerente de Divisão de Infra-Estrutura de Energia da
Feam, Morel Queiroz Ribeiro, queixou-se das limitações do órgão e
garantiu que os licenciamentos a projetos não são obstáculos ao
desenvolvimento, como é difundido, mas uma forma de impor
responsabilidades com o aspecto social.
Deputados prometem ações mais efetivas
O presidente da Comissão de Direitos Humanos,
deputado Durval Ângelo (PT), que dirigiu parte da reunião, disse que
vai criar um grupo de trabalho na Assembléia, composto pelos
diversos movimentos dos atingidos pelos problemas ambientais, para
acompanhar todas as denúncias. O deputado Laudelino Augusto (PT)
enfatizou que as denúncias levam a uma indignação ética, que a
qualquer momento desaguará em ações concretas. E receita: "contra a
dominação só há um remédio: a cidadania".
O deputado Padre João (PT), que dirigiu a parte
final da audiência, destacou a atuação de muitos deputados na defesa
dos direitos dos carentes e citou projeto de sua autoria e da
deputada Maria José Haueisen (PT), que virou lei e que garante
alguns direitos aos atingidos por barragens. Mas reconheceu que o
Legislativo não tem grande poder de resolver os problemas.
Presenças - Participaram
da reunião os deputados Durval Ângelo (PT), presidente da Comissão
de Direitos Humanos; Padre João (PT) e Laudelino Augusto (PT), da
Comissão de Meio Ambiente. E os atingidos, pesquisadores,
professores, advogados de movimentos sociais, da Comissão Pastoral
da Terra, do Conselho Indigenista Missionário e da Federação dos
Trabalhadores em Agricultura de Minas Gerais (Fetaemg).
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