O contexto sociopolítico e o significado do golpe de 64

Um jurista, dois jornalistas, um filósofo, um educador e uma militante dos direitos humanos foram os expositores no p...

31/03/2004 - 00:01
 

O contexto sociopolítico e o significado do golpe de 64

Um jurista, dois jornalistas, um filósofo, um educador e uma militante dos direitos humanos foram os expositores no painel "O contexto sociopolítico e o significado do golpe de 64", realizado na manhã desta quarta-feira (31/3/04) no Ciclo de Debates "Resistir sempre - 64 nunca mais" no Plenário da Assembléia. O evento contou ainda com a participação de 16 deputados, de sobreviventes da luta contra a ditadura, de familiares dos mortos e dezenas de estudantes. O painel foi coordenado pelo deputado Durval Ângelo (PT), que deu a palavra primeiramente à deputada Jô Moraes (PCdoB), representante dos parlamentares perseguidos. A transcrição completa dos anais do debate estará na edição do jornal "Minas Gerais", Diário do Legislativo, de 13 de abril.

Jô Moraes comparou os estragos de uma ditadura aos de um furacão, embora considere aqueles mais duráveis, e disse que o povo lutava na época pelas reformas fundamentais, a agrária, a institucional e a política. Lembrou o episódio da cassação dos três deputados estaduais operários, Dazinho Pimenta, Clodesmidt Riani e Sinval Bambirra em 1964, e relatou a solidariedade demonstrada pelo então deputado Navarro Vieira, que arrecadou fundos para socorrer a família de Sinval Bambirra. O deputado Sebastião Navarro Vieira (PFL) foi ao microfone de aparte agradecer a homenagem à memória de seu pai, acrescentando que "era conservador, mas bom cristão, e também tinha sofrido perseguição política durante a ditadura Vargas".

O primeiro a expor foi o professor Aluísio Pimenta, ex-reitor da UFMG, o único reitor de universidade federal brasileira a ser preso e exilado após o golpe. Ele disse que ninguém é contra as Forças Armadas, quando são parte da democracia, mas que as Forças Armadas, quando atuam em favor de uma ditadura, destroem um país. Citou o exemplo da Argentina, "um país que estava 50 anos na frente do Brasil e hoje foi reduzida a escombros". Para ele, uma ditadura é o pior desastre que pode acontecer a um país, pelos transtornos que causa em todas as áreas de atividade.

Pimenta lembrou a morte do estudante José Carlos da Mata Machado, que foi tão desfigurado pela tortura que seu corpo não pôde ser visto pela família. Em contraponto à coragem do estudante, Pimenta citou a covardia do então reitor da USP, Gama Filho, que denunciou à ditadura inúmeros professores e alunos de esquerda. Criticou também a proliferação de faculdades privadas: "Hoje é mais fácil abrir uma faculdade do que um botequim. Só em Belo Horizonte existem 21 faculdades de Direito". Finalizou com uma exortação aos estudantes: "Só com educação este País se tornará fácil de governar, e difícil de dominar e de escravizar".

Bicudo alertou para lacunas na Lei da Anistia

Em 64, o jurista Hélio Bicudo era chefe de gabinete do ministro da Fazenda de João Goulart, Carvalho Pinto. Hoje é vice-prefeito de São Paulo. "Vivi intensamente os antecedentes e as conseqüências do golpe militar, e acredito que tenha tido suas raízes no suicídio de Getúlio Vargas, na tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek e na tentativa de autogolpe de Jânio Quadros", disse Bicudo. "O golpe foi tramado por civis e militares, mas logo de início afastou as lideranças civis que o apoiavam. Isso ocorreu com os jornalistas Ruy de Mesquita Filho e Carlos Lacerda, e com Alfredo Buzaid, ex-ministro da Justiça. Os militares ficaram à vontade para desencadear a repressão política, as cassações, a censura à imprensa, os desaparecimentos. Os esquadrões da morte, gestados no início da ditadura, foram convocados para a repressão política, com a certeza da absoluta impunidade", continuou.

O vice-prefeito de São Paulo disse que o delegado Sérgio Paranhos Fleury foi o homem-símbolo da repressão, e foi a tal ponto poderoso que o Congresso votou uma lei para tirá-lo da prisão por homicídio comum. Bicudo elogiou também o destemor do arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, cuja atuação salvou a vida de muitos militantes, inclusive do mineiro Vinicius Caldeira Brant, torturado no DOI-CODI.

Na promulgação da Lei da Anistia, Bicudo escreveu editorial para o jornal "O Estado de S. Paulo" alertando que a lei seria de mão dupla, permitindo a anistia também aos torturadores. "Por isso convivemos até hoje com torturadores e assassinos do regime militar", afirmou. O jurista terminou sua exposição lamentando que os arquivos militares da guerrilha do Araguaia tenham sido incinerados, perdendo-se com isso a memória daqueles combatentes da liberdade. "Lembrar o passado é tirar lições para hoje e para amanhã", concluiu.

Viúva relembra atrocidades

Suzana Lisboa, representante dos familiares dos mortos e desaparecidos, começou lendo os nomes dos mortos num grande cartaz na lateral do Plenário e revelando as atrocidades que sofreram: olhos vazados, línguas cortadas, cabeças decepadas. "Começamos a lutar pelo esclarecimento do que houve com os desaparecidos em 1973/74, quando Geisel anunciou a distensão. Disseram-nos que essas pessoas não existiam. Os nazistas também transladavam suas vítimas para longe das famílias, na tentativa de silenciar os mortos além da própria morte, e evitar que as famílias pudessem se reunir em cemitérios e memoriais para homenageá-los".

Em 1979, a gaúcha Suzana conseguiu encontrar o corpo de seu marido enterrado sob nome falso no cemitério de Perus, em São Paulo. "Dos cerca de 160 desaparecidos, até agora conseguimos resgastar apenas três corpos. Até hoje não nos foi permitido entrar num quartel em Marabá para procurar as ossadas dos guerrilheiros do Araguaia", desabafou. A militante não reconhece o direito à anistia de torturadores, assassinos e mandantes, inclusive por uma exigência legal: a anistia tem que ser requerida, e nenhum deles se identificou e requereu. "Se lutar para resgatar a história de cada um é ser revanchista, então é o que sou. Nossos mortos nos espreitam e clamam por Justiça", encerrou.

Tropas de Minas poderiam ser contidas, diz jornalista

"A ditadura não morreu. Os jovens precisam saber o que ela representou de atraso, de retrocesso, de obscurantismo. É preciso que vocês estejam atentos, para que aqueles medos não voltem a assombrar nossa pátria", disse o jornalista José Maria Rabelo, diretor do jornal "O Binômio", fechado em 1964. Rabelo relatou o período turbulento que antecedeu o golpe. "As ligas camponesas se organizavam, precursoras do MST. O povo empolgado nas ruas, fazendo a sua história, mirando-se no exemplo bem-sucedido da revolução socialista cubana. Isso incomodava as elites brasileiras, acostumadas com séculos de poder incontrastável", ensinou.

Para Rabelo, as elites tiveram papel decisivo no golpe, inclusive os donos de jornais. "Todos os grandes jornais brasileiros têm que fazer um 'mea-culpa', porque apoiaram incondicionalmente o golpe, com exceção do 'Última Hora', que apoiava o governo". Ele considera incompreensível que as forças leais a João Goulart não tenham resistido ao golpe: "As forças de Minas que desceram para o Rio eram um exército de mata-ratos, comandado por um general folclórico, Olímpio Mourão, que se intitulava 'uma vaca fardada'. Não resistiriam a seis rajadas de metralhadora dos aviões estacionados no Rio de Janeiro, cujo comandante era um brigadeiro leal a Jango", disse Rabelo.

Jornalista compara Jango e Lula

O outro jornalista expositor, Raimundo Pereira, 64 anos, é o editor da revista "Reportagem" e do site "Oficina de Informações". Ele traçou paralelos entre o governo João Goulart e o governo Lula, como o fato de Lula também hesitar em questões fundamentais. "Como Jango, Lula também tem um governo híbrido, com companheiros de toda confiança, como José Dirceu e Aldo Rebelo, mas também como gente como Henrique Meirelles, que fez operações lesivas ao interesse nacional para o Banco de Boston", afirmou.

Lula não tem coragem de retornar o setor energético ao controle estatal, segundo o jornalista. Raimundo Pereira denunciou que, na medida provisória de reforma do setor elétrico enviada ao Congresso, a ministra Dilma Roussef e a esquerda do governo foram derrotadas em favor do argumento do ministro Palocci, que desejava ver as estatais no programa de privatizações. "Só mesmo a atitude corajosa do deputado Fernando Ferro, relator da Mensagem, fez com que as estatais fossem preservadas".

Raimundo Pereira pregou o fortalecimento da imprensa livre e popular como instrumento de sustentação do governo Lula. "O jornalismo burguês tenta aturdir o leitor com novidades para que não pense. Os conservadores controlam os meios de comunicação muito mais do que no governo Goulart, e Lula está perdendo o poder que ganhou nas urnas", afirmou.

Sem Goulart, Brasil seria um imenso Haiti

Dos expositores, o mais contestado pela platéia foi João Quartim de Morais, professor de Filosofia da Unicamp, para quem a história se escreve com palavras, e a palavra "revolução" foi usada pelos golpistas durante 20 anos. Quartim afirmou que o período Goulart foi o de maior crescimento das esquerdas, mas também lançou as bases para o desenvolvimento industrial do país, sem as quais hoje o Brasil seria "um imenso Haiti".

O professor disse que o General Sodré foi o maior historiador do Brasil no século XX, pelos dados que revelou sobre a Operação Brother Sam, em que forças navais norte-americanas se deslocaram para a costa brasileira para apoiar o golpe, e sobre os desvios de fundos públicos perpetrados pelo ex-governador paulista Ademar de Barros, que aderiu às passeatas por Deus, Família e Propriedade. Quartim criticou também o controle dos meios de comunicação por grupos privados, "que nas graves crises se alinham do pior lado".

As afirmações de Quartim foram contestadas pelo deputado Sebastião Navarro Vieira, que discordou da atitude de se atribuir à imprensa livre toda a culpa pelo golpe militar. Trazendo o tema ao contexto atual, o deputado Miguel Martini (PSB) disse recear que a operação de crédito montada pelo governo Lula para salvar as emissoras de TV - com R$ 4,5 bilhões só para a Rede Globo - poderia gerar um noticiário inteiramente favorável ao governo. O deputado Adelmo Carneiro Leão (PT), concordou com o expositor que não existe imprensa livre no Brasil.

Presenças - Participaram do painel da parte da manhã os deputados Mauri Torres (PSDB), presidente da Assembléia; Adelmo Carneiro Leão (PT), 2º vice-presidente; Durval Ângelo (PT), Rogério Correia (PT), Sebastião Navarro Vieira (PFL), Miguel Martini (PSB), Roberto Ramos (PL), Gustavo Valadares (PFL), Biel Rocha (PT), Laudelino Augusto (PT), Ricardo Duarte (PT), Arlen Santiago (PTB), Wanderley Ávila (PPS) e as deputadas Jô Moraes (PCdoB), Ana Maria Resende (PSDB) e Marília Campos (PT).

 

 

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