Especialistas condenam tentativa de criminalizar invasões de
terras
Com 260 processos de desapropriação na Vara Agrária
Federal e 126 de reintegração de posse na Estadual, representantes
do Poder Judiciário garantiram que não há atrasos nos processos em
Minas e que, se depender da Justiça, a reforma agrária não ficará
parada. Mas esta não é a avaliação do Ministério Público, da
Procuradoria do Estado e de estudiosos do tema do Rio e São Paulo,
que acusaram o Judiciário de colocar muitos entraves nas ações
ajuizadas. Eles participaram, nesta terça-feira (25/11/2003), do
segundo dia do Fórum Técnico Reforma Agrária em Minas: Impasses e
Perspectivas, que está sendo realizado pela Assembléia
Legislativa e termina na quarta-feira (26).
Todos falaram sob o tema O Poder Judiciário no
Processo da Reforma Agrária, que foi desdobrado em itens como a
função social da propriedade, movimentos sociais em face do Direito
Penal e Medida Provisória nº 2.183/2001. Pelo menos quanto à MP
houve consenso: todos a criticaram, discordando de uma interpretação
básica dada a ela: a de que as invasões de terra representam crime.
Os participantes não concordaram com essa visão, afirmando que as
invasões de terra, além de um instrumento legítimo de pressão, são
um direito garantido pela Constituição Federal.
Criação da Vara Agrária agilizou processos
Para o juiz designado da Vara Agrária em Minas,
criada em junho do ano passado, Cássio de Souza Salomé, a reforma só
começou a partir de então. Quando assumiu, segundo sua exposição,
encontrou 141 conflitos e 17 movimentos organizados em 67 comarcas,
abrangendo 86 municípios e 11 mil famílias. Desde a criação, segundo
o juiz, foram feitas 124 audiências para 109 conflitos que envolviam
4 mil famílias - ou 12 mil pessoas. Nas audiências, foram feitos
acordos em 87 casos. A Vara Estadual atua nas ações em que ainda não
há a participação da União (reintegração de posse) e onde o Estado
pretende retomar o domínio de terra para reforma.
Nos processos de reintegração (ações concessórias),
a Vara Agrária tem buscado acordos, por meio de audiências com as
partes envolvidas, segundo Cássio Salomé. Tais acordos são feitos
mediante um contrato de comodato entre os proprietários e os
sem-terra, até que haja uma solução pelo Incra. Ele disse ainda que,
em caso de não haver conciliação, a Vara Agrária pode ajuizar ação
incidental para declarar a propriedade como improdutiva. Mas isso,
segundo Cássio Salomé, ocorre em tese e ainda não aconteceu em
Minas.
Dificuldades - Em sua
avaliação, todo o processo da reforma está envolto em uma série de
dificuldades, entre elas: a distância da Vara Agrária dos centros de
conflito; a dificuldade de compreensão entre as partes, na fase de
execução do processo; a imaturidade dos movimentos sociais, em
relação à atuação do Judiciário; o preconceito da comunidade
jurídica; a reação das entidades dos ruralistas, "que têm poder de
pressão na mídia"; e a desestruturação do Incra, reconhecida pelos
próprios dirigentes do órgão.
Juiz apresenta sugestões
Mas, além de colocar dificuldades, o juiz disse que
pretendia levantar sugestões para acelerar a reforma agrária.
Criticando o plano apresentado recentemente pelo presidente Luiz
Inácio da Silva Lula, Cássio Salomé disse que ele não traz nada de
novo: " não há mais recursos previstos e não há projeto de
reestruturação do Incra, o que indica que o governo federal não quer
fazer a reforma agrária". Para ele, a concepção atual da reforma é
equivocada, porque não prevê melhorias para os assentamentos, como
financiamentos, escolas, saneamento, eletrificação. "Do jeito que
está proposta, a reforma agrária no País vai inventar a favelização
rural", completou.
Ele sugere a aprovação de uma emenda constitucional
que destine de 5% a 10% das terras improdutivas, para a formação de
um banco de terras, "que não seria dos trabalhadores, mas de toda a
sociedade brasileira, com o controle feito por conselhos
municipais". Cássio Salomé sugeriu ainda a criação da Justiça
Agrária, nos moldes da do Trabalho; e diferenciação de indenização
conforme prazos.
O juiz federal Weliton Militão dos Santos, da Vara
Agrária Federal, também disse que não há atrasos no Judiciário. Para
ele, 90% dos processos ajuizados tiveram solução, com julgamento do
mérito das ações. "Hoje temos sete ou oito processos em fase de
decisão", garantiu, adiantando ainda que, se antes as ações
demoravam de 15 a 30 anos, agora "não passam de 15 dias a um
mês".
Ministério Público não concorda com
otimismo
A visão otimista sobre a agilidade do Judiciário
não foi compartilhada pelo procurador de Justiça Afonso Henrique de
Miranda Teixeira, coordenador da Promotoria de Justiça de Direitos
Humanos e Conflitos Agrários do Ministério Público de Minas Gerais.
Para ele, com toda a estrutura para se fazer a reforma - que conta
com as duas Varas, com a Promotoria especializada, com a Secretaria
da Reforma Agrária e com a Delegacia Agrária -, nem sempre ocorre a
conciliação. "E quando não há a conciliação, como fica o litígio?",
questiona. Para ele, os juízes se negam a recorrer às novas normas
jurídicas tanto da Constituição Federal, como dos próprios
princípios da República. Afonso Henrique Teixeira garantiu que há
decisões tomadas ainda de acordo com o antigo Código Civil, revogado
em 2002.
O promotor criticou os contratos de comodato e
arrendamento citados pelo juiz Cássio Salomé, que não passariam de
"maquiagem para a propriedade improdutiva". Enfatizando a função
produtiva da terra, Afonso Henrique Teixeira disse que não questiona
o direito de propriedade, "mas o povo brasileiro tem o direito de
exigir que a terra cumpra o seu papel social". Destacando que há uma
tendência de se criminalizar as invasões de terras, o promotor disse
que as considera legítimas e que "as ações do Judiciário envergonham
o resto da sociedade". Para ele, todas as tentativas de criminalizar
os movimentos sociais vão encontrar resistência no Ministério
Público.
Com veemência, Afonso Henrique Teixeira lembrou
que, na área penal, é preciso coibir a violência no campo e isso se
faz proibindo-se a ação das milícias armadas, "porque quem sofre a
violência é o sem-terra e sua família", disse. Para ele, os impasses
da reforma agrária estão na violação do Direito Agrário e do Direito
Constitucional.
Invasões não são crime, mas direito
Mesma linha de raciocínio foi seguida pelo juiz
federal do Rio de Janeiro, José Carlos Garcia, que disse que as
ações dos sem-terra, além de não representarem delito, ainda são um
direito. Ao contrário de outro expositor que defendeu mais leis para
a reforma, José Carlos Garcia acredita que o problema não é
técnico-jurídico, mas de poder. "Se 50% das terras estão na mão de
1,4% da população, o problema é de poder, das relações entre as
pessoas". Ele criticou também a formação dos profissionais de
Direito, "que têm uma visão puramente informativa, em detrimento de
uma visão analítica". O juiz lembrou que a situação social é
resultado da injustiça social, "decorrente de relações que até hoje
envolvem a escravidão", enfatizou.
Sobre o ângulo da legislação, falou o juiz do 2º
Tribunal de Alçada de São Paulo, Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior.
Ele discorreu sobre os instrumentos jurídicos da reforma agrária,
como a Constituição Federal, com destaque para a questão das
indenizações. Para ele, alguns direitos considerados intocáveis,
como o da propriedade, hoje são vistos dentro da perspectiva da
função social da terra. Ele defendeu que o juiz deve tratar cada
caso individualmente, trabalhando-os no contexto do Direito moderno,
"no sentido de mudar as relações entre as pessoas e dessas com o
Estado", enfatizou.
Participou das palestras ainda o procurador do
Patrimônio Público e Imobiliário do Estado de Minas Gerais, Romeu
Rossi, que pediu mais leis para agilizar a reforma agrária. Isso
porque, segundo ele, em relação aos processos envolvendo o Estado, a
morosidade chega a atingir até 40 anos (caso de ação de
desapropriação). Rossi citou o caso de um pedido de reintegração de
terras devolutas do Estado contra um proprietário que mora em São
Paulo, em que a Justiça concedeu a ele o direito a 6 mil hectares
"do território mineiro". Romeu Rossi pediu a ampliação da Vara
Agrária em Minas e que as perícias possam ser feitas por
profissionais do Estado, nomeados pelo juiz, ao invés de peritos
particulares, "que custam muito caro para o Estado".
Debates - Na fase de
debates, vários participantes do Fórum Técnico questionaram o juiz
estadual da Vara Agrária de Minas Gerais, Cássio de Souza Salomé,
quanto à suposta não observância, por parte dele, da função social
da propriedade rural. O magistrado respondeu que essa é uma questão
de interpretação do juiz, e no seu caso, ele se atém ao primeiro
registro de posse da propriedade. Mas ressalvou que sua decisão não
é absoluta, podendo ser questionada através de recursos ao Tribunal
de Alçada.
Ele afirmou ainda que sempre tem buscado o acordo.
Além disso, Salomé afirmou que toma sua decisão pensando, em
primeiro lugar, na possibilidade da fazenda envolvida no conflito
ser aproveitada para assentamento. "Se eu desse liminar levando em
conta a função social de fazendas não adiantaria, pois em nenhuma
delas seria realizado assentamento", justificou.
Mas o juiz do 2º Tribunal de Alçada Cível de São
Paulo, Dyrceu Aguiar Dias, discordou da opinião de Cássio Salomé,
defendendo que os operadores da Justiça devem considerar
prioritariamente a função social da propriedade. "A primeira posse
de uma propriedade não é nada frente a sua função social", disse. O
juiz federal titular da Vara Agrária em Minas Gerais, Weliton
Militão dos Santos, acrescentou que o fazendeiro só fará jus ao
direito fundamental à propriedade, se ela estiver cumprindo sua
função social.
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