Riqueza anda lado a lado com a miséria no Triângulo Mineiro
Uberlândia sediou encontro regional do Fórum Minas Sem Miséria, organizado pela ALMG para envolver a sociedade na discussão do assunto.
Onde há riqueza, também há miséria. Em um país com tantas desigualdades como o Brasil, as duas condições coexistem, apesar de aparentemente contraditórias. No Triângulo Mineiro, responsável por 17% do produto interno bruto (PIB) mineiro e com 10% da população do Estado, a constatação chama ainda mais a atenção.
Segundo dados de 2022 do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), 74 mil pessoas vivem em situação de extrema pobreza nas duas principais cidades, Uberlândia (46 mil) e Uberada (28 mil), sobrevivendo com uma renda mensal de até R$ 89. Outras 37 mil pessoas vivem com até R$ 178 nas duas cidades, as mais “ricas” da região.
Em virtude do cenário desolador, ao longo de toda a sexta-feira (26/9/25), Uberlândia, segundo maior município mineiro e “capital” do Triângulo, sediou os debates do Encontro Regional do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba do Fórum Técnico Minas Sem Miséria, promovido pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em parceria com mais de 70 entidades da sociedade civil e do poder público.
A partir de uma demanda da presidenta da Comissão de Direitos Humanos, deputada Bella Gonçalves (Psol), que coordenou os trabalhos no Campus Glória da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), representantes de 20 municípios buscaram colher subsídios para a elaboração do Plano Mineiro de Combate à Miséria, previsto na Lei 19.990, de 2011, que criou o Fundo de Erradicação da Miséria (FEM).
O fundo deve custear programas e ações de erradicação da pobreza e da extrema pobreza. Formam a coordenação a ALMG, secretarias de Estado e conselhos estaduais. Mas, conforme a parlamentar denunciou, parte dos recursos estaria sendo usada para outros fins, que, embora nobres, como o transporte escolar, não atacariam diretamente a erradicação da miséria.
Além dos encontros regionais como o de Uberlândia, uma consulta pública no Portal da Assembleia, até o dia 8 de outubro, possibilita a participação de cidadãos que não podem comparecer presencialmente aos debates, permitindo o envio de propostas via internet.
Outros dois encontros regionais ainda vão ocorrer em Araçuaí (Jequitinhonha/Mucuri) e Betim (Região Metropolitana de Belo Horizonte). Os dois primeiros foram realizados em Juiz de Fora (Zona da Mata) e Montes Claros (Norte de Minas).
Na etapa final do fórum, no início do próximo ano, representantes dos encontros regionais vão discutir e priorizar propostas já levantadas. Posteriormente, um comitê eleito vai analisá-las na plenária final.
O grupo poderá recomendar ao Poder Legislativo mineiro a produção de requerimentos, projetos de lei, emendas a proposições em tramitação ou sugestões ao orçamento do Estado, com foco no combate à miséria.
Miséria é multidimensional e não se resume à falta de alimentos
Na abertura oficial da etapa regional em Uberlândia, ainda pela manhã, a deputada Bella Gonçalves reforçou a importância do Fórum para colocar a erradicação da miséria como prioridade nas políticas públicas do Estado.
Ao longo de todo o debate, ela e outros participantes lembraram que é preciso entender a pobreza como um flagelo multidimensional. Além da questão financeira que leva à fome, aspecto mais cruel, a miséria envolve a falta de acesso à saúde, ao saneamento básico, à educação e ao trabalho, por exemplo.
A parlamentar lembrou que Minas tem atualmente 3,6 milhões de pessoas na pobreza, que têm de sobreviver com até R$ 109 reais por mês. Cinco milhões vivem com insegurança alimentar, ou seja, não têm o que comer em quantidade e qualidade suficientes para garantir sua subsistência e sua saúde. Já o déficit habitacional no Estado é estimado em 600 mil moradias.
“Estamos falando de uma vulnerabilidade que impacta mais mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência, e em sua maioria negros”, destacou Bella Gonçalves. Os números são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua.
A deputada Bella Gonçalves também leu pronunciamento do presidente da ALMG, deputado Tadeu Leite (MDB), aos participantes da etapa regional. Nele, o parlamentar lembrou que, conforme dados da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), de junho de 2024, 2,3 milhões de mineiros estão em situação de pobreza extrema.
“Destes, 826 mil convivem com a insuficiência de renda agravada por precárias condições de habitação, saneamento básico, educação e trabalho”, destacou Tadeu Leite.
Grupos priorizam 25 propostas fundamentais
A etapa regional do Encontro Regional do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba do Fórum Técnico Minas Sem Miséria reuniu à tarde quase 200 participantes em grupos de trabalho para discutir e priorizar cinco propostas de cinco eixos fundamentais para a superação da pobreza. Ao final, houve a eleição de seis representantes para participar da etapa estadual do fórum, no próximo ano.
A discussão levou em conta também temas transversais, como povos e comunidades tradicionais, população em situação de rua, população LGBT, pessoas catadoras de materiais recicláveis e migrantes e refugiados. A ideia aí é que a pobreza não se distribui igualmente entre a população, ou seja, tem marcadores de gênero, raça, classe social, entre outros.
No eixo 1 (Soberania e segurança alimentar e nutricional), uma das propostas mais votadas prevê o fomento e o financiamento para a criação e a manutenção de equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional. Incluem-se aí as cozinhas solidárias e comunitárias, restaurantes populares, quintais produtivos, hortas urbanas e bancos de alimentos.
A destinação de, no mínimo, 5% dos recursos do FEM para educação escolar do campo, quilombolas, indígenas e povos e comunidades tradicionais, com toda infraestrutura necessária, foi uma das propostas priorizadas no eixo 2 (Trabalho digno e educação).
Já entre as propostas priorizadas do eixo 3 (Diversidade, assistência social e saúde), destaca-se a criação de serviço de proteção a famílias atípicas dentro do Sistema Único de Assistência Social (Suas), com cofinanciamento estadual. Aliado a isso, a proposta prevê a revisão da tipificação nacional de serviços socioassistenciais para a inclusão do serviço criado.
No eixo 4 (Moradia, território e meio ambiente), os participantes sugeriram priorizar medidas que garantam segurança jurídica que assegure a posse de terra. Da mesma forma, também a instalação de instrumentos jurídicos do Estado que favoreçam a permanência sobre a terra para pessoas em situações precárias, como os acampados, populações quilombolas, assentados e ribeirinhos.
Por fim, além da otimização e transparência, a ampliação da fonte de recursos do FEM foi uma proposta priorizada nas discussões em torno do eixo 5 (Controle social e governança do Fundo de Erradicação da Miséria). Para isso, seria criada a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) da mineração e a chamada Cide do Agrotóxico.



Pobreza e falta de moradia no campo e na cidade
As regiões do Triângulo e do Alto Paranaíba têm 66 municípios e cerca de 2 milhões de habitantes. Apenas sete cidades têm mais de 100 mil habitantes, com destaque para Uberlândia (761 mil) e Uberaba (360 mil). Por isso, o combate à miséria nessas regiões precisa atacar em duas frentes: no campo e na cidade.
Foi o que destacou o professor titular da Universidade Federal de Uberlândia, o arquiteto e urbanista Fernando Garrefa, responsável por uma das palestras de contextualização na abertura da etapa regional.
“Somos considerados uma área rica do Estado e os números mostram isso mesmo, mas ainda estamos no nível 1 do problema da habitação, que é a família ter minimamente onde morar ou renda suficiente para custear uma moradia sem que isso represente tirar o alimento da mesa”, destacou o especialista. Segundo ele, o déficit habitacional na cidade é de 49 mil moradias, dado ainda de 2014, que precisa ser atualizado.
Na escala do problema habitacional, que tem íntima relação com a questão da pobreza e da miséria, o nível 2 diz respeito à localização da moradia e sua relação, entre outros aspectos, com a mobilidade urbana, e o nível 3, à qualidade da moradia.
“Vale lembrar que os municípios precisam ter estoque de terra para liderar o planejamento urbano. Nos países desenvolvidos, as cidades têm entre 40% e 80% de terras públicas. Aqui isso quase não existe, o que nos obriga a travar uma queda de braço com a especulação imobiliária”, lamentou Fernando Garrefa.
Dessa forma, a pobreza multiplica os assentamentos urbanos e rurais nas duas regiões. Nesses locais, as cozinhas solidárias surgidas ainda na pandemia de covid trazem esperança a quem tem fome. Uma delas funciona na Ocupação Fidel Castro, na região central de Uberlândia, onde moram cerca de 1,2 mil famílias à espera da regularização e da urbanização do espaço que chamam de lar.
A outra palestrante na abertura do fórum, Joana da Conceição de Souza Gama, é coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e uma das lideranças do local.
“Passamos de 200 marmitas por dia no início para 3 mil atualmente e agora até já recebemos apoio do governo federal. Uma de nossas lutas que já estamos negociando com a Sedese é para que o FEM também credencie cozinhas solidárias”, apontou.
Ainda segundo dados da Pnad, Uberlândia tem atualmente sete cozinhas solidárias em funcionamento, que atendem 4 mil pessoas por dia. “E a cozinha solidaria não dá só comida. Cada uma delas tem um projeto social paralelo, a maioria deles voltado para educação”, emendou Joana Gama.