O objetivo do ciclo de debates foi discutir a atual política sobre drogas, as diversas abordagens de prevenção e tratamento do uso de drogas e as experiências inovadoras
Mário Sobrinho explicou o conceito de justiça terapêutica, na qual se propõe a suspensão do processo judicial sob algumas condições
Luciana Boiteux criticou a lógica do sistema penal brasileiro na atualidade

Justiça terapêutica é novo paradigma no combate às drogas

Estratégia baseada em experiência de cortes nos EUA é defendida por palestrante de ciclo de debates.

26/06/2015 - 19:39

Em vez da repressão cada vez mais forte e onerosa, uma abordagem mais humanizada, barata e eficiente. Essa é a proposta da chamada justiça terapêutica, defendida pelo procurador de Justiça Mário Sérgio Sobrinho, que trabalha na Promotoria de Justiça Criminal do Fórum de Santana, na capital paulista. Coube a ele abrir o terceiro painel desta sexta-feira (26/6/15) do Ciclo de Debates Políticas Sobre Drogas e a Juventude: Prevenção, o "X" da Questão, promovido pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

O objetivo do evento foi discutir a atual política sobre drogas; as diversas abordagens de prevenção e tratamento do uso de álcool e outras drogas, especialmente entre crianças e adolescentes; e ainda debater as experiências inovadoras desenvolvidas pelo sistema de justiça para lidar com os aspectos jurídico-criminais associados ao consumo de drogas.

Neste último aspecto, o painel “Aspectos jurídico-criminais associados ao consumo de drogas e as experiências exitosas nesse âmbito”, que foi coordenado pelo deputado Antônio Jorge (PPS), presidente da Comissão de Prevenção e Combate ao Uso de Crack e Outras Drogas da ALMG, teve como ponto alto a defesa apaixonada da justiça terapêutica por Mário Sobrinho.

Baseada na experiência das cortes americanas de drogas, que surgiram em Miami (EUA), em 1989, ele explicou o conceito de justiça terapêutica, na qual se propõe a suspensão do processo judicial sob algumas condições. “A pessoa opta por ir para um tratamento em vez de cumprir pena. Oferecemos a oportunidade de conhecer a experiência de outras pessoas que passaram por algo semelhante e se recuperaram. Tudo é baseado na lei dos Juizados Especiais Criminais, que prevê o acordo proposto pelo promotor de Justiça”, explicou Mário Sobrinho.

“Na justiça terapêutica, não há somente juiz, promotor e advogado. Há uma equipe multidisciplinar que cuida de cada caso. Não há prisão, mas o indivíduo se engaja em um programa muito rigoroso. É muito importante contarmos com o apoio local, por meio de grupos de autoajuda. Também é fundamental uma boa seleção de casos, e tudo começa com uma reunião motivacional. A audiência é individual e depois temos o monitoramento da frequência”, apontou o procurador. Os objetivos dessa estratégia são, assim como nos EUA, reduzir o consumo, os custos do aprisionamento e a reincidência.

Expansão - O sucesso das cortes de drogas fez com que a estratégia tivesse uma rápida expansão em vários estados americanos. São atualmente 2.966 cortes de drogas, de vários tipos, para adultos, adolescentes, motoristas embriagados, famílias, indígenas e veteranos de guerra, por exemplo. No Brasil, segundo Mário Sobrinho, tudo começou em 2000, no Rio Grande do Sul, e de lá se espalhou para outras regiões do Brasil, sendo que no Fórum de Santana ela foi adotada dois anos depois.

“Na minha experiência com a Justiça, sei que a história de muitas pessoas poderia ser bem diferente se ela tivesse sido acolhida, em algum momento da sua vida, por algum programa de tratamento. O importante é fazer as coisas acontecerem do jeito que for possível e divulgar a justiça terapêutica para que mais pessoas saibam que há outro caminho possível”, defendeu o procurador.

Ao final da apresentação, o relato do procurador recebeu o apoio do deputado Antônio Jorge. “Eu conheço bem essa experiência e estamos trabalhando por ela também aqui em Minas Gerais. A justiça terapêutica oferece uma valiosa alternativa para a recuperação dos dependentes químicos”, definiu o parlamentar.

RJ promove usuários a traficantes e agrava problema

“A simples aplicação da norma legal não representa a solução de todos os problemas”. Com essa afirmação, a coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciana Boiteux, defendeu uma nova abordagem das autoridades para a questão das drogas. “Precisamos sempre lembrar que a pessoa que infringe a lei não consulta antes o Código Penal para escolher o crime que vai cometer”, ironizou.

“Levar usuários de drogas à prisão quase nunca traz bons resultados dentro desse sistema proibicionista em que vivemos. Precisamos apurar os efeitos da aplicação das leis. O efeito final que sempre se espera com isso é a prevenção, o que nem sempre acontece”, analisou a pesquisadora. Ela citou o panorama do uso e tráfico de drogas do Rio de Janeiro como um bom exemplo das distorções do sistema penal.

“Tudo o que acontece no Rio de Janeiro, sobretudo relacionado às drogas, logo ganha as manchetes. Em uma pesquisa que fizemos, descobrimos que, ao contrário das manchetes, a grande maioria dos condenados são pequenos traficantes, não estavam armados, não eram quadrilhas organizadas. A lei não prevê prisão em flagrante para usuários, mas quem faz a distinção entre uso e tráfico é a polícia. E essa distinção raramente é desfeita pelo Judiciário depois”, apontou Luciana Boiteux.

A pesquisadora fez uma dura crítica à lógica do sistema penal brasileiro na atualidade. “O sistema penal é hoje apenas uma imposição de dor. Mesmo assim queremos que os presos deixem o sistema depois como pessoas melhores? Essa não é uma guerra contra as drogas, é uma guerra contra as pessoas. Precisamos colocar o ser humano no centro das políticas públicas, analisando se elas vão mesmo gerar algum resultado. De resto, só continuaremos a enxugar gelo, que é o papel da justiça criminal hoje em sua intervenção com usuários e traficantes de drogas”, criticou.

Ela lembrou ainda a posição do Brasil como o quarto país do mundo que mais encarcera pessoas. E o tráfico de drogas, segundo Luciana Boiteux, é o que mais encarcera mulheres no Brasil e em todo o mundo. Em todo o País, esse tipo de crime responde por cerca de 60% das presas. Nessa ótica, ela questionou a eficiência das cortes americanas de drogas nos EUA, já que o país é o primeiro do ranking mundial no encarceramento de pessoas. Portugal, ao contrário, descriminalizou o consumo e ampliou o acesso ao sistema de saúde, conseguindo resultados melhores.

Loucura - A integrante do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, Rosimeire Silva, lembrou sua militância na luta antimanicomial ao defender uma abordagem semelhante na questão do consumo de drogas. Ela também é psicóloga do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

“O PAI-PJ é um serviço da Justiça mineira que introduziu uma nova resposta para o chamado louco infrator. Estamos nessa luta há 15 anos e não podemos recuar diante dessa nova forma de loucura, a que é provocada pelo uso de drogas”, apontou. Segundo ela, já é consenso que a legislação sobre o assunto no País é responsável por encarceramento e mortalidade massivos, que vitimam ainda mais a juventude negra e pobre.

“Se essas leis pretendem cuidar também da questão de saúde publica, não estão conseguindo. É preciso que a questão das drogas seja afastada da legislação penal. Os danos da aplicação dela são infinitamente superiores do que os do consumo”, resumiu.