'Uberização' é nova forma de precarização do trabalho doméstico
Participantes de audiência sobre o tema reforçam importância da conscientização e da formação política das mulheres atingidas.
05/06/2024 - 20:40Um problema secular ganhou nova denominação. Os aplicativos mais conhecidos no transporte – daí a palavra “uberização” – estão em novas áreas, como a das faxinas domésticas, com terceirização de mão de obra. O resultado é a maior precarização desse trabalho, em muitos casos com condições degradantes e até análogas à escravidão.
O tema foi debatido nesta quarta-feira (5/6/24), pela Comissão do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Participantes defenderam a luta política por mais direitos, além da qualificação e conscientização das vítimas, quase sempre mulheres negras e em condições de vulnerabilidade.
Na reunião, solicitada pelo presidente da comissão, deputado Betão (PT), gestores, estudiosos e representantes de movimentos sociais defenderam ainda a elaboração de uma norma estadual semelhante à Política Nacional de Cuidados do Brasil. Uma das metas dessa iniciativa é a proteção a quem cuida, seja no trabalho remunerado ou não.
Betão salientou que, se a faxina custa R$ 100, pelo menos R$ 30 ficam com o aplicativo que contratou a faxineira. Além disso, se a “patroa” reclama da profissional, ela paga multa ou trabalha de graça. “A falta de fiscalização da jornada e das condições de trabalho cria situações análogas à escravidão”, sintetizou.
Vitória Murta, articuladora Social da Associação Tereza de Benguela, destacou a sobrecarga de trabalho dessas mulheres, que ainda têm filhos e a própria casa para cuidar. “Nos movimentos sociais elas são maioria, o que significa que também estão à frente do cuidado social ou comunitário”, reforçou.
Segundo ela, essas mulheres têm trajetória de trabalho doméstico, sem garantia à aposentadoria e outros benefícios. “Precisamos que as trajetórias sejam revistas e que as leis impactem a vida dessas mulheres”, pontuou. Ela ainda lembrou que instituições públicas e privadas também usam esse trabalho terceirizado.
“São quatro faxinas em oito horas e o contratador não se responsabiliza sequer pelo transporte entre um prédio e outro. Em alguns casos, a faxineira não pode usar o banheiro do prédio”, exemplificou. Participantes citaram também que às vezes a faxineira recebe algo material – e não dinheiro – em troca do trabalho.
Problema chegou ao meio rural
O problema pode parecer urbano, mas tem seus reflexos no meio rural, conforme atestou Jorge dos Santos Filho, da Articulação dos Empregados Rurais de Minas Gerais. Segundo ele, trabalhadores como os da cafeicultura, por exemplo, migram para o interior e levam suas mulheres, que acabam nos serviços domésticos como diaristas. “É o povo preto invisível”, salientou.
“A ‘uberização’ é um retrocesso de direitos. O trabalho escravo começa assim, com a precarização e a ausência do Estado”, afirmou também Andreia Minduca, coordenadora-geral de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Jonas Ferraz Rodrigues, advogado da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) trouxe dados que também reforçam a complexidade da questão. Segundo ele, o primeiro caso documentado de trabalho doméstico análogo à escravidão é de 2017, embora esse seja um problema histórico.
O Coletivo Tereza de Benguela foi homenageado na reunião, com entrega de votos de congratulação à vice-presidente da entidade, Renata Aline Oliveira.
Iniciativa deve estimular a economia do cuidado
As discussões da audiência devem subsidiar uma proposta sobre a chamada economia do cuidado, que busca apoiar as pessoas que cuidam de outras. Segundo Betão, uma das possibilidades é aprimorar o Projeto de Lei (PL) 715/23, da deputada Lud Falcão (Pode), que já tramita na ALMG.
Na audiência, a experiência da Prefeitura de Belo Horizonte foi destacada. “O que é o cuidado enquanto trabalho? Ele sustenta a economia e a vida, mas não é valorizado e, muitas vezes, não é sequer remunerado, sendo resolvido no âmbito privado”, pontuou Alice Brandão, coordenadora de grupo de trabalho sobre o tema na PBH.
Alice reforçou que as políticas sociais, como assistência à saúde ou moradia, são essenciais para a sustentabilidade do trabalho de cuidar. Para ela, alguns pactos terão que ser refeitos e algumas regulamentações também para garantir, por exemplo, que uma pessoa que limpa uma escada ou janela tenha condições de fazer isso em segurança. Segundo ela, projeto de lei nesse sentido já tramita na Câmara Municipal.
A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) também apresentou ações como a produção de materiais técnicos para formação política das domésticas e outras trabalhadoras do cuidado. Segundo Maíra Fernandes, superintendente de Articulação de Políticas para Mulheres da Sedese, há ainda uma discussão interna a respeito de uma política de cuidado para todo o Estado.
Organização da categoria
A primeira empregada doméstica Doutora Honoris Causa do Brasil e presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Creuza Maria Oliveira, defendeu a organização da categoria em sindicatos, que teriam mais peso político na luta. “O combate à precarização passa pela formação sindical e política”, enfatizou.
Para Creuza, o Brasil já tem leis suficientes sobre o trabalho doméstico. Ela citou, além da PEC das Domésticas, convenções internacionais que foram ratificadas recentemente pelo Brasil e objeto de decreto presidencial em maio. Essas normas garantem, de acordo com Creuza, direitos até mesmo a quem trabalha somente um dia por semana.
A representante da Fenatrad teme que leis específicas nos estados dividam a categoria. Ela defende o modelo de São Paulo, com acordo coletivo entre sindicatos de patrões e de empregados. Mas Vitória Murta, da Associação Tereza de Benguela, argumenta que as convenções têm apenas diretrizes, insuficientes para contar a precarização do trabalho doméstico das mulheres.