A deputada Ana Paula Siqueira e o Padre Mauro reforçaram a importância do museu no resgate da história dos negros que habitavam o antigo Curral del Rey
Estamos vendo o apagamento cruel da nossa história
Museu resgata tradições e memória de favelas e comunidades quilombolas

Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos é memória viva de BH

Espaço de cultura e resistência no Aglomerado Santa Lúcia, Muquifu, como é conhecido, teve importância debatida na ALMG.

14/12/2021 - 19:23

Garantir o reconhecimento das favelas e dos quilombos urbanos enquanto lugares não apenas de sofrimento e de privações, mas também com detentores de memória digna de ser preservada e multiplicada, em virtude do patrimônio imaterial inestimável das comunidades negras que os compõem. Essa é a missão do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), criado em 2012, no Aglomerado Santa Lúcia, Zona Sul de Belo Horizonte.

Para reforçar essa missão e divulgar seu acervo cultural e histórico, que contam histórias de vida que precisam ser conhecidas por todos, não só pelos moradores que estão ali representados, foi realizada na tarde desta terça-feira (14/12/21) audiência pública da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

Consulte o resultado e assista ao vídeo completo da reunião.

Racismo e respeito às mulheres

A reunião atendeu a requerimento da deputada Ana Paula Siqueira (Rede), que preside a comissão e também é a coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, Quilombolas e Demais Comunidades Tradicionais.

O debate na comissão também levou em conta que a maior parte das moradias da periferia são chefiadas por mulheres e, portanto, o Muquifu também conta a história de resistência delas.

A audiência pública também foi considerada pela deputada como uma extensão dos debates em torno do tema da consciência negra, contemplando a discussão dos desafios da ocupação dos espaços públicos e de poder por parte da população negra.

“Com a reabertura dos espaços da cidade queremos que todos possam ir lá visitar o Muquifu, como eu fiz, e sair de lá transformados e unidos na luta contra o racismo e pelo respeito às mulheres, sobretudo as mães negras. Em 124 anos de história da nossa cidade tivemos diversos atores importantes, mas parte dessa história ainda precisa ser devidamente contada”, aponta Ana Paula Siqueira.

Visitação

Principal convidado da audiência, o curador do museu, cientista social e padre Mauro Luiz da Silva explicou que o Muquifu é um museu que, embora ainda não reconhecido oficialmente, surgiu do anseio da própria comunidade de contar o seu lado da história.

“É um museu comunitário e todos que lá trabalham ainda são voluntários. Então só funcionamos nas tardes de terça-feira, embora possamos receber visitantes em outros dias, inclusive nos finais de semana, após agendamento”, explicou. O telefone para agendamentos, inclusive por WhatsApp, é o (31)99257-0856.

O museu está situado na Rua Santo Antônio do Monte, 708, Vila Estrela, no Aglomerado Santa Lúcia. Lá também funciona a Capela Maria Estrela da Manhã, outra ação de resgate histórico da religiosidade dos povos negros.

Um cemitério debaixo do asfalto da Rua da Bahia

“É um museu fora da perspectiva branca, escravocrata e eurocêntrica. No Muquifu colecionamos apenas tesouros”, explica padre Mauro, ao criticar a presença de objetos utilizados no encarceramento e tortura de escravos negros em outros museus.

Ele também é coordenador do Projeto NegriCidade, que entre outras ações resgata a história dos negros que habitavam o antigo arraial de Curral del Rey e lá expressavam sua religiosidade muito antes de, em 1897, ser implantada a nova capital mineira.

Na pesquisa para sua tese de doutorado sobre o tema, padre Mauro conta que o documento mais antigo que descobriu, datado de 1807, atesta a existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que possuía inclusive um templo vinculado então à Arquidiocese de Mariana, inaugurado em 1819 e demolido em 1895.

Um vídeo produzido pelo Projeto NegriCidade mostra como era o antigo arraial e a antiga igreja fundada pela Irmandade.

“Nada do antigo arraial foi preservado, a não ser o casarão do Museu Histórico Abílio Barreto", conta o curador do Muquifu.

O templo ficava na Rua da Bahia, quase esquina com Rua dos Timbiras, e tinha anexo um cemitério que também foi soterrado debaixo do asfalto. “Quase ninguém sabia que os corpos dos nossos irmãos negros estavam sepultados debaixo do asfalto, sem nenhuma referência”, lamentou.

Expulsão

O objetivo do Muquifu, segundo ele, é resgatar esse tipo de memória para fazer um contraponto ao processo de expulsão dos negros do seu território original. “Atualmente, 98% dos moradores dos limites da Avenida do Contorno são de pessoas não negras, ao contrário de antes da criação de Belo Horizonte”, apontou.

Ele lamentou ainda que, a partir de 1922, com a ascensão de Dom Antonio dos Santos Cabral, o Dom Cabral, como primeiro arcebispo metropolitano de BH, a perseguição às manifestações religiosas dos negros, na forma das festas de Reinado, tenha se recrudescido.

Resistência - A deputada Ana Paula Siqueira lembrou que o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos desempenha um importante papel de resistência e resgate da memória do povo negro original do antigo Curral del Rey, como aqueles sepultados em pleno Centro de BH.

“A tentativa de calar os Reinados pode ser comparada à tentativa de extermínio dos jovens pretos em andamento não somente em Minas, mas nas periferias de todo o Brasil”, apontou.

Quilombos urbanos sob ameaça constante

Outros duas participantes da audiência lembraram a importância do museu na valorização dos quilombos urbanos, que ainda hoje são vítimas de perseguição.

Presidente da Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais, Edna Correia de Oliveira é oriunda do Quilombo de Gorutuba, em Jaíba (Norte) e diz que ainda hoje a palavra de ordem é resistência por meio de iniciativas como o Muquifu.

“Estamos vendo o apagamento cruel da nossa história. Como movimento organizado, já sabíamos da vulnerabilidade de nosso povo, mas a retirada de direitos está cada dia mais aprofundando isso. Mas não vamos desistir”, aponta.

A historiadora Miriam Aprígio Pereira é representante do Quilombo dos Luízes, situado em pleno bairro Grajaú, Zona Oeste de BH, cujas origens remontam ao século XIX, antes da fundação de BH.

Ele ainda resiste apesar das ameaças que vêm inclusive do poder público, que cede às pressões de grupos econômicos interessados no território dos remanescentes quilombolas.

“Ainda convivemos com descaso e ameaças e, apesar de em 2017 termos sido reconhecidos como patrimônio imaterial da Capital, nossos territórios continuam negligenciados”, aponta.