A impunidade da Chacina de Unaí, execução por pistoleiros de três auditores-fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho, foi debatida em audiência na ALMG
Após 18 anos, chacina de Unaí ainda não teve desfecho na justiça

Impunidade ainda persiste após 18 anos da Chacina de Unaí

Participantes de audiência relatam indignação e esperança por justiça em julgamento de mandante em BH nesta terça (24).

23/05/2022 - 18:40

“A gente precisa de paz pra seguir em frente, mas não existe paz na impunidade. A impunidade incentiva o mal”. Essa declaração contundente, feita pela delegada regional do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait), Ivone Corgosinho Baumecker, simboliza o clima de indignação dos participantes da audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) na tarde desta segunda-feira (23/5/22).

A reunião foi realizada para debater as repercussões da Chacina de Unaí, nome pelo qual ficou conhecida no Brasil e até no exterior a execução por pistoleiros de três auditores-fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho naquela cidade do Noroeste do Estado. O requerimento para a realização do debate é da presidenta da comissão, deputada Andréia de Jesus (PT).

Consulte o resultado e assista ao vídeo completo da reunião.

Sob o estigma da impunidade, o crime completou 18 anos no último dia 28 de janeiro e, nesta terça-feira (24), acontece novo julgamento do fazendeiro e ex-prefeito de Unaí, Anterio Mânica, já condenado a 100 anos de prisão, em outubro de 2015, como um dos mandantes do crime, em julgamento depois anulado por suposta falta de provas.

Ato em defesa da vida

O julgamento será novamente no Tribunal do Júri da Justiça Federal em Belo Horizonte e um ato público em defesa da vida deve acontecer no local (Avenida Álvares Cabral, 1805, Santo Agostinho) a partir das 8 horas, segundo informações do presidente do Sinait, Bob Everson Carvalho Machado.

“Esperamos que o resultado deste novo julgamento seja o mesmo. Afinal, foi um crime contra o Estado brasileiro praticado por grupos econômicos que estavam acostumados a usar o seu poder para cometer qualquer tipo de crime”, afirmou Bob Machado.

“Essas pessoas precisam pagar pelo que planejaram e efetivamente fizeram. Planejar a morte de outro ser humano é muito ruim. Espero que não seja mais um júri em vão”, emendou Ivone Baumecker.

"Eu comprei os caixões"

Mesmo 18 anos depois, a sindicalista diz se lembrar bem do dia 18 de janeiro de 2004 e daqueles seguintes à chacina. “Todos nós temos dias de memória para ancorar nossas vidas. Dias bons e dias terríveis como aquele. Eu comprei os caixões, escolhi os túmulos, avisei as famílias e depois enterrei meus colegas. Nunca esquecerei da imagem dos filhos deles, todos crianças ainda, ao lado daqueles caixões com a certeza de que nunca mais veriam os pais”, contou Ivone.

Ainda segundo ela, um colega de sindicato recentemente embarcou no mesmo voo com Antério Manica, que estava acompanhado de sua filha. “Um organiza tudo para que o outro perca tudo e fica livre por aí com direito a ver sua filha todos os dias, o que foi negado para todas aquelas crianças”, lamentou.

Mendigando por justiça

Helba Soares da Silva, viúva de Nelson José da Silva, um dos fiscais assassinados, lembrou que seu marido foi morto porque fazia bem o seu trabalho, que era incomodar quem enriqueceu graças à mão de obra barata do trabalho escravo.

“Há 18 anos que a gente mendiga por justiça e todo ano é a mesma coisa. Amanhã teremos mais um julgamento, mas se vivêssemos em um país sério já era pra quem foi condenado a 100 anos de prisão já estar pagando por seu crime”, lamentou, em tom de resignação.

“Não sei até quando isso vai, provavelmente até prescrever. Cadeia no Brasil é para preto e pobre. Se você tem dinheiro pode fazer o que quiser”, completou.

R$ 45 mil por quatro vidas

Carlos Alberto Menezes Calazans, que na época da Chacina de Unaí era delegado regional do Trabalho em Minas Gerais, lembrou detalhes da trama criminosa, entre eles a apuração de que o planejamento do crime tinha como vítima inicial o líder dos auditores-fiscais (Nelson).

Mas, de acordo com Carlos Calazans, ao ser informado de que a vítima estava acompanhada de três colegas, Norberto Mânica, irmão de Antério, teria prontamente garantido o pagamento pela execução de todos eles. “O crime custou no total R$ 45 mil”, contou.

“Nesses 18 anos fizemos quase tudo o que foi possível. Fomos a todos os presidentes do Supremo Tribunal Federal pedir justiça. Todos nos prometeram isso, mas nunca conseguimos colocar os mandantes na prisão. Vários auditores já enfrentaram de tudo depois disso e nós ainda não conseguimos justiça. Está todo mundo solto”, afirmou.

Mandante atua nas sombras

O advogado criminalista e assistente de acusação contratado pelo Sinait para o julgamento desta terça (24), Roberto Tardelli, lamentou a dificuldade de se condenar os mandantes de crimes como a Chacina de Unaí, que ele comparou ao assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Mariele Franco, em 2018.

“O mandante é como um rato que atua nas sombras. Com seu poder econômico, ele financia e coloca os executores na cena do crime e depois patrocina a impunidade. É incompreensível a anulação do primeiro julgamento, pois as provas estão todas lá nos autos. Temos que afirmar para a sociedade que isso nunca mais vai acontecer”, avaliou.

Trabalho escravo

A equipe do Ministério do Trabalho foi assassinada quando fiscalizava a existência de situações análogas à escravidão em fazendas da região de Unaí, entre elas a da família Mânica. As repercussões da chacina fizeram com que o dia 28 de janeiro passasse a ser lembrado como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, situação que nunca cessou mesmo após 134 anos da Lei Áurea, na visão da deputada Andréia de Jesus (PT).

“A luta desses trabalhadores assassinados continua viva. Essa ainda é uma ferida aberta na história do Brasil. A Lei Áurea é vigente, mas o processo de abolição ainda é incompleto”, afirma a presidenta da Comissão de Direitos Humanos. Ela defendeu ainda a aplicação da Emenda Constitucional 81, promulgada em 2014, que prevê a expropriação de propriedades para fins de reforma agrária na qual for flagrado o trabalho escravo.

“Temos que cuidar da memória coletiva até que não seja mais necessário. Participar dessa audiência é uma tarefa dolorosa, mas temos que cobrar das autoridades federais e estaduais a punição dos culpados e o que tem sido feito na luta contra o trabalho análogo à escravidão. Por isso temos que ocupar este espaço com o nosso luto e nossa luta contra a impunidade”, definiu a deputada Beatriz Cerqueira (PT).