A luta das mulheres contra diferentes preconceitos é reconhecida por meio de homenagens a 42 lideranças femininas - Arquivo ALMG
A transexual Rhany Merces enfrenta hostilidade também pela cor e pela estética
Makota Célia defende a liberdade de se escolher, ou não, a religião

Mulheres de luta ensinam resistência

Quando o preconceito se torna combustível para o enfrentamento, surgem lideranças na sociedade, como Rhany e Célia.

Por Luciene Ferreira
05/03/2020 - 18:20

Duas mulheres, duas histórias de resistência, duas vidas exemplares que, ao lado de outras 40, serão homenageadas nesta sexta-feira (6/3/20), por se destacarem na história de Minas Gerais. A jornalista Makota Célia Gonçalves Souza e a militante da Rede Afro LGBT Rhany Merces guardam marcas de violência e ainda enfrentam preconceitos, mas reagiram e reagem para assegurar o respeito e o espaço às pessoas excluídas pela sociedade.

As duas, juntamente com outras ativistas, receberão votos de congratulações da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), no evento Sempre Vivas, Mulheres, História e Resistência, comemorativo do Dia Internacional da Mulher. A solenidade acontece a partir das 9 horas, no Auditório José Alencar. As atividades relacionadas aos direitos da mulher integram também as comemorações dos 300 anos de Minas, a serem completados em 2 de dezembro deste ano. 

A transexual Rhany Merces, coordenadora do Fórum Nacional de Trans e Travestis (Fonatrans), conta que é vítima de preconceitos cruzados: por sua orientação sexual, por ser negra, por ser gorda, por morar em favela e, agora, também por ser mulher.

Aos 18 anos, quando começou a transição, Rhany passou a sofrer agressões verbais e até físicas. “Recebia muitos xingamentos, ameaças. Me jogavam pedras e até saco de lixo na cabeça já recebi”, lembra ela.

As agressões ocorreram inclusive na faculdade onde Rhany iniciou o curso de educação física. “Entrei no curso como rapaz e voltei no 2º período como mulher”, recorda-se. A reação dos colegas foi tão violenta que ela acabou por abandonar a graduação no 5º período. “Chegaram a me dizer que pessoas como eu não tinham que estar ali”, diz.

Com o avanço da transição, Rhany passou a perceber os outros preconceitos. Implicavam com seu cabelo, com seu peso e rejeitavam sua cor. “A partir do momento em que me tornei passável (termo para explicar a aparência mais feminina e, com isso, mais aceitável pela sociedade), percebi que quando era garoto eu tinha privilégios”, afirma. Nesse período, começou o início de seu convívio com a misoginia.

Atualmente, Rhany afirma que os maiores problemas que enfrenta são o racismo e a gordofobia. Mesmo se destacando no ativismo e exercendo papéis importantes na comunidade e em programas públicos, ela é vítima do preconceito estrutural. Recorda-se de uma ocasião em que foi participar de uma reunião num ministério em Brasília. Ao terminar o encontro, enquanto juntava os papéis que levou, foi abordada por uma funcionária pedindo que buscasse também o lixo na sala ao lado. “Só por ser preta, ela pensou que eu fosse faxineira”, lembra.

Rhany já foi faxineira, cabeleireira, estoquista e atualmente cursa história, dá aulas de danças para crianças do programa Fica Vivo e é conselheira de saúde no Morro das Pedras, comunidade onde ainda vive, em Belo Horizonte.

A resposta a tanto sofrimento veio por seu ativismo pelos direitos das pessoas trans, dos negros e das mulheres. Por sua postura de enfrentamento, é referência social e ganhou o respeito dos vizinhos. Aprendeu com a mãe a manter a delicadeza mesmo na luta. Toda sua atuação é voltada para assegurar especialmente às pessoas trans o direito de ocupar todos os espaços. Ela lamenta que ainda hoje o nível de prostituição é alto nesse segmento, muito em função das dificuldades de conseguir emprego e acesso a outras profissões: “A sociedade é cruel e nos empurra para a marginalidade”.

Pelo direito de rezar

Makota Célia Gonçalves Souza, coordenadora nacional do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab), também convive com o racismo em todas as suas formas de manifestação, especialmente a religiosa. Candomblecista, a sacerdotisa desenvolve seu trabalho na defesa do direito à crença, sobretudo das religiões de origem africana. “Queremos ter o direito de rezar, ou não rezar”, argumenta.

O preconceito contra essas religiões está intimamente ligado ao racismo contra os negros, na opinião da ativista. “Para o racista, o preto quando usa branco é macumbeiro ou pipoqueiro. Não nos perguntam se somos do candomblé ou da umbanda, nos taxam de macumbeiros”, afirma, ao explicar como a confusão demonstra também ignorância. Afinal, macumba é uma árvore africana e também instrumento musical, mas o termo tem sido usado pejorativamente para se referir às religiões de matriz africana.

Neta de escravos e caçula de onze filhos, Makota Célia aprendeu com os pais o respeito a todo tipo de crença. Entre os irmãos, há evangélicos, umbandistas, católicos e até cristãos ortodoxos. “Meu pai sempre dizia que toda forma de rezar é sagrada”, lembra.

Ela mesma professou a religião católica por muitos anos, participando ativamente de atividades da Igreja, inclusive como professora de crisma. Foi apresentada ao candomblé por seu padrinho de santo, Paulo Afonso Moreira, aos 29 anos. Foi no candomblé que encontrou a solidariedade e outros princípios, que o catolicismo já não atendia.

O preconceito contra a mulher é outra questão combatida por Makota Célia. Para ela, as mulheres que mais sofrem são as negras. “Investimos em nossos filhos e não sabemos se terão futuro, porque são as maiores vítimas de violência”, diz ela.

Segundo a religiosa, a tradição africana é matriarcal e as mulheres são símbolo de resistência. E é imbuída desse poder que Makota Célia desenvolve seu trabalho de enfrentamento ao ódio. “Hoje, o papel da mulher preta é ainda defender seus parentes”, afirma. E uma dessas formas é manter o canto, a dança e toda alegria herdada de seus ancestrais africanos.