No primeiro semestre do ano passado, quase 75 mil mulheres sofreram algum tipo de agressão - Arquivo ALMG
A delegada Isabela de Oliveira afirma que a violência contra a mulher começa ainda na infância
Fortalecer os vínculos afetivos traz segurança para a mulher, ensina a psicóloga Monaliza Alcântara

No mês das mulheres, violência ainda é maior desafio

Atividades na Assembleia vão debater o crescimento das agressões e as formas de resistência e enfrentamento.

Por Luciene Ferreira
04/03/2020 - 20:00 - Atualizado em 05/03/2020 - 18:31

No mês de comemoração do Dia Internacional da Mulher, a constatação é de que as homenageadas ainda não têm o que celebrar, no que diz respeito aos números da violência, que continuam crescentes. Para refletir sobre o assunto, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realiza atividades nesta e na próxima semana, sob o tema Sempre Vivas, Mulheres, História e Resistência. Os eventos fazem parte também das comemorações dos 300 anos de Minas, a serem completados em 2 de dezembro deste ano.

A solenidade oficial de abertura dos eventos do Dia Internacional da Mulher na ALMG será nesta sexta-feira (6/3/20), à 9 horas, no Auditório José Alencar. Na ocasião, serão homenageadas com votos de congratulações 42 mulheres que fizeram ou fazem história em Minas Gerais.

À tarde, das 13 às 18 horas, será realizada, na Praça Sete, no Centro de Belo Horizonte, audiência pública sobre “mulheres, história e resistência”, promovida pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. Ao longo do dia, diversas entidades realizarão debates, rodas de conversa e apresentações culturais.

É preciso falar sobre violência

Apenas no primeiro semestre de 2019 – último dado disponibilizado pela Polícia Civil –, 74.361 mulheres mineiras notificaram que foram vítimas de algum tipo de violência doméstica. O número é 4,14% maior que o registrado nos primeiros seis meses do ano anterior.

As agressões certamente são bem mais numerosas, segundo a delegada Isabela Franca de Oliveira, chefe da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso, à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância da Polícia Civil. O fato é que muitas vítimas não denunciam o agressor, por medo, vergonha, dependência financeira ou emocional, entre outras razões.

De acordo com a delegada, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que apenas 10% dos crimes sexuais são notificados, o que pode servir de dimensão para os demais atos contra as mulheres. “Pode-se notar que, quando um caso de violência ganha repercussão, logo surgem outras vítimas do agressor fazendo denúncias”, exemplifica a policial.

Por outro lado, Isabela de Oliveira acredita que as campanhas de conscientização e a ampliação da proteção legal à mulher, da qual a Lei Maria da Penha é exemplo, contribuem para aumentar o número de notificações. “A divulgação das medidas protetivas ajudam a encorajar a vítima”, diz a delegada.

A psicóloga e educadora social Monaliza Silva de Alcântara concorda que as denúncias têm crescido, mas atenta para um aumento real da violência contra a mulher. “É indispensável pensar em como o nosso cenário político, social e econômico tem influenciado no aumento das violências. Dessa forma, acredito que de fato a violência contra a mulher tem crescido. Até porque, existem também os casos que são subnotificados”, argumenta.

Monaliza Alcântara é vice-presidenta do Sindicato dos Psicólogos de Minas Gerais e integrante da Comissão Mulheres e Questões de Gênero do Conselho Regional de Psicologia (CRP). Na opinião da especialista, a cultura brasileira, que é machista e sexista, contribui para que muitas vítimas acabem não reconhecendo que estão inseridas em relacionamentos abusivos.

A ausência de denúncia dificulta ao Estado intervir e evitar a violência. A delegada Isabela de Oliveira explica que na maior parte dos feminicídios (assassinato de mulheres por questão de gênero) não foram registradas notificações anteriores de agressão.

Ela sugere que as pessoas que sabem, presenciam ou desconfiam de violência contra as mulheres denunciem os casos. “É preciso meter a colher sim”, diz ela ao lembrar o ditado, para ela equivocado, de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”

O silêncio das vítimas e a omissão de parentes, vizinhos ou amigos acaba por levar ao aumento também dos feminicídios – o último estágio do perverso ciclo de violência.

Nos primeiros seis meses de 2019, 67 mulheres foram assassinadas, 5 a mais que no mesmo período de 2018. Ao todo, no ano anterior, foram registrados 150 casos de feminicídio e 279 tentativas de assassinato contra mulheres.

A violência começa na infância e o agressor está em casa

A delegada Isabela de Oliveira explica que a violência contra a mulher começa já na infância. As meninas são as maiores vítimas de pedofilia e de uma cultura de desvalorização da mulher.

Os números mostram que os principais agressores estão dentro de casa. Aproximadamente 34% dos casos de violência são cometidos por cônjuges/companheiros e 32% por ex-cônjuges e ex-companheiros.

“Muitos homens veem a mulher como propriedade”, critica a policial. As agressões e os feminicídios ocorrem, principalmente, por homens que não aceitam o fim dos relacionamentos. De acordo com a delegada, o período de maior risco é durante o primeiro ano da separação.

“Existe em nossa sociedade um discurso que naturaliza a violência de gênero em várias instâncias, o que dificulta as mulheres reconhecerem o ciclo da violência e conseguirem sair dele para darem conta de realizar a denúncia”, lamenta Monaliza Alcântara.

Isabela de Oliveira ensina que o ciclo de violência contra a mulher tem três estágios que se repetem, muitas vezes terminando com o feminicídio.

1) Tensão – são os períodos de discussões que vão se intensificando, criando um clima crescente de tensão entre a mulher e o agressor;

2) Explosão – nesse estágio começam as agressões físicas, sexuais e psicológicas. É o ápice da violência;

3) Lua de mel – após a consumação da violência, o agressor geralmente se arrepende, pede perdão e convence a vítima de que vai mudar. Mas, pouco tempo depois, a história começa a se repetir a partir de novas discussões.

Segundo a educadora social, para interromper esse ciclo é preciso intensificar o empoderamento das mulheres, por meio da rede de políticas públicas e de instituições que trabalham no enfrentamento à violência.

A prática de humilhar, minimizar, ridicularizar a mulher é outra forma de violência: a psicológica, que ocupa a segunda colocação entre os casos registrados. No primeiro semestre de 2019, 29.204 mulheres foram vítimas desse crime, um aumento de 6,47% se comparado aos seis primeiros meses de 2018.

Isabela de Oliveira afirma que a violência psicológica é a mais difícil de ser percebida pela vítima. O agressor destroi a autoestima da mulher por meio de todo tipo de difamação, injúria e ameaça. Também usa de controle excessivo, muitas vezes até do patrimônio da mulher, e do isolamento dos familiares. 

Monaliza Alcântara lembra que, no caso das mulheres transexuais, a questão é ainda mais grave, pois sofrem preconceito duplo.

As mulheres também devem buscar acompanhamento psicossocial para sair das relações abusivas e se inserirem na rede pública de proteção. Qualquer pessoa também pode e deve denunciar os casos de violência pelo Disque 180.