Discussão tem como base um projeto que tramita na ALMG e que proíbe a aplicação de requisitos mais rígidos para a doação de sangue
Para pesquisador João de Oliveira, não faz sentido eliminar doadores que têm relação sexual estável
Restrição a doação de sangue por homossexuais gera polêmica na ALMG

Orientação sexual não deveria basear regras para doar sangue

Em reunião, participantes defendem que critérios sejam revistos e se pautem apenas em condutas de risco do indivíduo.

04/09/2019 - 21:24

A Portaria 158, de 2016, do Ministério da Saúde, não permite que homens que tiveram relações sexuais com outros homens, no prazo de 12 meses, possam doar sangue. Uma vez que os hemocentros, em geral, se pautam nas diretrizes do órgão, doadores com tal perfil não são admitidos nessas instituições.

Embora haja testes laboratoriais que possam detectar a contaminação por vírus, como o HIV (causador da Aids), em até 23 dias da situação do contágio, a legislação ainda exige que esse doador se abstenha do ato sexual por um ano. Esse foi o ponto mais problematizado pelos participantes da audiência pública, promovida pela Comissão de Direitos Humanos, nesta quarta-feira (4/9/19).

A discussão vem no bojo da tramitação, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), do Projeto de Lei (PL) 5.207/18, que proíbe aplicar requisitos mais rígidos, para a doação de sangue, baseados exclusivamente pela orientação sexual dos indivíduos, sendo vetada a diferenciação dos critérios para quem manteve relações sexuais com pessoas do mesmo sexo.

O autor da proposição, deputado Cristiano Silveira (PT), foi quem solicitou a realização do debate. Para ele, assentar a regulamentação na orientação sexual do indivíduo é uma prática discriminatória e que reforça a já “ultrapassada” ideia de que existe um grupo de risco. Hoje, profissionais da saúde defendem que sejam avaliadas se as condutas da pessoa representam riscos, ressalta o parlamentar.

Hemominas justifica que restrições são baseadas em critérios técnicos

No entanto, a presidente da Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia do Estado de Minas Gerais (Hemominas), Júnia Guimarães Mourão Cioffi, afirma que a instituição se baseia em critérios técnicos e no princípio da proteção daqueles pacientes submetidos à transfusão de sangue. Ela alerta que a pessoa que recebe sangue contaminado tem 92% de chance de desenvolver a respectiva doença.

Júnia Cioffi explica ainda que a triagem clínica, o questionário feito por médicos ao candidato a doador, tem como objetivo a exclusão de riscos. E, segundo ela, entre os homens, os casos de infecção pelo HIV, registrados entre 2007 a junho de 2018, em indivíduos maiores de 13 anos, são mais recorrentes quando há exposição homossexual ou bissexual, perfazendo 59,4% dos casos. Já, entre as mulheres, nessa mesma faixa etária, 96,8% dos casos se inserem na categoria de exposição heterossexual.

A presidente do Hemominas disse que dados como esses, provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), balizam a restrição prevista para os homens que tiveram relações sexuais com outros homens. Outro aspecto dessas relações que respaldaria a disposição, conforme a gestora, é que o sexo anal aumenta potencialmente o risco de contaminações.

Júnia reconhece que o próprio Hemominas já utiliza testes que podem detectar o vírus do HIV em janelas imunológicas (expressão usada para designar o período que um organismo leva, a partir de uma infecção, para produzir anticorpos que possam ser detectados por exames de sangue) bem menores que o prazo de 12 meses. De acordo com ela, as marcações biológicas utilizadas nos exames da instituição podem detectar o vírus em 23 dias e em até 10 dias.

Contudo, ela também afirma que os testes têm limitações e para se precaver de um falso negativo, o período de um ano é adotado desde 2004. Ela lembra que essa restrição já teve, no Brasil, caráter definitivo.

Para pesquisadores, restrição tem componente discriminatório

Na avaliação de pesquisadores, o prazo de 12 meses está em descompasso com a realidade e com a assertividade dos exames existentes hoje. Gustavo Domingos Melo Pinto, pesquisador voluntário do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e consultor em Saúde Coletiva do Transvest, abriu sua fala lembrando que, até final da década de 80, a imprensa se referia à Aids como a “peste gay”.

Ele questionou o porquê da legislação brasileira ainda adotar uma janela imunológica tão extensa, uma vez que mesmo a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece que o parâmetro está desatualizado. Ele citou ainda exemplos de países que adotam tempo bem menor, como o Canadá, de apenas 120 dias, e a Espanha, que desde 2015, não impõe qualquer período.

Já João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira, pesquisador de gênero e sexualidade e mestre em Direito pela UFMG, falou sobre sua frustação de ser impedido de doar sangue devido à sua orientação sexual. Ele afirma que é preciso, de fato, barrar pessoas que adotam práticas de risco como fazer sexo com múltiplos parceiros sem proteção; mas não faz sentido eliminar doadores que têm relação estável e praticam sexo seguro.

Ele acrescenta ainda que os casos dos homens heterossexuais ainda são subnotificados. "Esses descobrem, em geral, que são portadores do vírus quando doam sangue ou quando suas parceiras se submetem a exames pré-natais", relata. Por isso, ele defende a revisão das regras, pautando-as na conduta do indivíduo e não em sua orientação sexual.

Segundo o psicólogo, Roberto Chateaubriand Domingos, do Centro de Referência de Doenças Infecto-parasitárias, a legislação leva em conta que o sexo anal apresenta maior risco de contaminação, mas o dispositivo específico (artigo 64, inciso IV da portaria) faz referência apenas a homens de orientação homossexual. Os homens heterossexuais que fazem sexo anal com suas companheiras não são considerados.

Em resposta às colocações desses participantes, Dario Brock Ramalho, médico infectologista e gestor da Subsecretaria de Vigilância em Saúde da Secretaria de Estado de Saúde, afirma que as ferramentas da ciência podem cometer equívocos e que as restrições aplicadas não têm componente discriminatório, mas procuram tornar o sangue doado “matematicamente mais confiável”.

Júnia Cioffi sugeriu que a Assembleia Legislativa envie uma recomendação para que o Ministério da Saúde promova novas avaliações técnicas para que a regulamentação seja revista, e, quem sabe, possa assim se reduzir o prazo da janela imunológica.

Projeto – O deputado Guilherme da Cunha (Novo), que será relator do Projeto de Lei 5.207/19, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), agradeceu pelos esclarecimentos, mas adiantou que não fará juízo de mérito, se restringindo a analisar os aspectos legais da proposição.

Consulte o resultado da reunião.