Audiência foi realizada pela Comissão de Prevenção e Combate ao Uso de Crack e outras Drogas nesta quarta (16)
Santiago falou que a efetividade da ação só poderá ser verificada daqui, no mínimo, a dois anos

Debate sobre legalização da maconha precisa sair do tabu

Jurista explica experiência uruguaia e recomenda que Brasil dissemine debate para encontrar o melhor caminho a seguir.

16/11/2016 - 18:34 - Atualizado em 16/11/2016 - 19:20

A experiência de legalização da maconha no Uruguai, embora ainda em andamento, pode até servir de base para algo semelhante no Brasil no futuro, mas o primeiro problema a ser enfrentado por aqui é a grande dificuldade de se debater o tema, ainda considerado tabu, para então se decidir como agir. Em linhas gerais, essa foi a conclusão da audiência pública realizada nesta quarta-feira (16/11/16) pela Comissão de Prevenção e Combate ao Uso de Crack e outras Drogas da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). A reunião atendeu a requerimento do presidente da comissão, deputado Antônio Jorge (PPS).

Boa parte da reunião foi dedicada a uma apresentação do professor de Direito Processual na Universidade de Montevidéu, Santiago Pereira Campos. O jurista é considerado uma das maiores autoridades mundiais no assunto, tendo exercido importante papel no processo de regulamentação da legalização da droga no Uruguai, durante o governo de José Mujica (2010-2015). Ao final da palestra “Regulação do Cannabis no Uruguai - Do paradigma da proibição ao paradigma da regulação”, ele ainda respondeu a dezenas de perguntas da plateia.

Santiago Pereira é membro do Conselho Diretor do Centro de Estudos de Justiça das Américas, do Instituto Iberoamericano de Direito Processual e, ainda, da Associação Internacional de Direito Processual. Também integra um grupo de pesquisas do Banco Mundial sobre saúde. Ele está em Belo Horizonte para participar do Encontro Internacional “Direito a Saúde, Cobertura Universal e a Integralidade Possível”, que será realizado no Minascentro, entre esta quinta (17) e sábado (19). O evento é uma atividade conjunta da ALMG, do Tribunal de Justiça, do Ministério Público e do Grupo Banco Mundial.

Fundamentalismo – Tanto o jurista, quanto o parlamentar e o outro convidado da audiência, o professor adjunto da Faculdade de Direito e coordenador do curso de Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Renato César Cardoso, foram unânimes na defesa de que os dois lados da questão primeiro se desarmem para possibilitar uma discussão mais produtiva sobre qual estratégia seguir. E seja ela qual for, ficou clara nas posições a importância do Poder Legislativo como catalisador do debate.

“Em termos de políticas públicas, nada se pode copiar. A realidade social é diferente de país para país, mas em todos eles é preciso uma abertura maior ao debate. Por isso, a experiência uruguaia não é a da liberação da maconha, mas da regulação do uso baseada na liberdade de informação. Damos as informações e cada um toma a decisão se usa ou não”, analisou Santiago Pereira.

Segundo ele, o que começou há três anos, na aprovação da primeira lei, com uma margem apertada de votos, depois detalhada com a edição de vários decretos, ainda levará no mínimo dois anos para que se possa avaliar com clareza sua efetividade. Tudo aconteceu na sequência de um extenso debate com a população, mas os sinais são positivos, conforme explica Santiago Pereira, tendo em vista inclusive a repercussão no exterior. “Vários estados norte-americanos aprovaram, em plebiscito nas últimas eleições, sistemas distintos para permitir o uso do princípio ativo da maconha (THC)”, apontou.

Na avaliação de Santiago Pereira, a originalidade do Uruguai reside no fato de que as autoridades assumiram sua responsabilidade sobre todas as etapas, desde a produção ou importação até a comercialização da maconha e seus derivados. “O enfoque deve ser sempre multidisciplinar. Sou um jurista e tenho o meu enfoque, mas todos precisam ser ouvidos. É preciso o acompanhamento permanente do Poder Legislativo para aprimorar a legislação. Mas algo precisava ser feito diante do fato de que, até agora, perdemos todas as lutas contra o narcotráfico. Era preciso afastar o cidadão dos criminosos”, criticou.

Saiba como é regulamentado o consumo da maconha no Uruguai

Para produzir, comercializar e consumir maconha no Uruguai é preciso ser cidadão do país, maior de 18 anos e se registrar. São três modalidades: o cultivo doméstico, a associação a clubes específicos para esse fim ou a compra em drogarias autorizadas. As duas primeiras já estão em vigor, faltando apenas a implementação da terceira opção, que implica a implantação de um sistema de identificação e controle dos consumidores e na produção em escala industrial, para a qual duas empresas já foram licenciadas. É possível portar até 40 gramas sem ser importunado pelas autoridades, mas, assim como o álcool, é terminantemente proibido dirigir sob o efeito do THC.

No cultivo doméstico, são permitidas até seis plantas por casa e a produção de até 480 gramas por ano. Os clubes, que são pessoas jurídicas, podem ter de 15 e 45 membros e lá é permitida a produção das mesmas 480 gramas por sócio por ano, com o limite de 99 plantas por instituição. Toda a produção deve ser dividida entre os sócios e os clubes devem se situar em locais específicos (nunca perto de escolas, por exemplo). Além da licença para isso, as drogarias têm sua venda limitada a 40 gramas mensais por cidadão (ou as mesmas 480 gramas por ano). Desde 2013, foram registrados 5.332 cultivos domésticos e 22 clubes, em um país com 3,8 milhões de habitantes.

Contudo, os limites rigorosos têm levado ao que já foi apelidado de "mercado gris" (cinza). Pessoas que não são consumidores se registram e adquirem a maconha para repassá-la a quem deseja consumir além do limite. Conforme Santiago Pereira, não se trata de um mercado negro (ilegal), daí o apelido, mas que desafia o controle pelas autoridades.

IRCCA - No centro de tudo está o Instituto de Regulação e Controle de Cannabis (IRCCA), vinculado tanto à Secretaria Nacional de Drogas quanto ao Ministério da Saúde. O instituto tem inclusive um conselho nacional honorário com participação de todos os segmentos envolvidos, inclusive usuários. Entre os desafios que ainda persistem está, por exemplo, destravar operações bancárias em virtude da matriz de muitos bancos ficar em outros países, com legislação restritiva. Também é preciso, segundo Santiago Pereira, ter uma política de preços competitivos com o mercado ilegal, o que já levou à isenção de impostos para o consumidor. E, ainda, talvez o mais importante, continuar dialogando com a opinião pública uruguaia, que ainda é parcialmente contrária à medida.

A expectativa, no futuro, é de que o Uruguai se transforme também em um importante centro mundial de pesquisas sobre o uso da maconha para fins terapêuticos. “Temos muitas empresas interessadas nisso também e essa prática se equipara a toda a regulamentação rígida na pesquisa de medicamentos. Ainda não há dados conclusivos sobre os benefícios justamente devido às dificuldades de investigação científica em virtude da proibição em quase todo o mundo, o que pode mudar”, apontou Santiago Pereira.

Deputado compara debate a tribunal de inquisição

O deputado Antônio Jorge defendeu a pluralidade de opiniões nesse tipo de debate, sem posições fundamentalistas de ambos os lados. “Não estamos em um tribunal de inquisição, em que é preciso ser radicalmente contra ou a favor. Como médico psiquiatra, sei os efeitos nefastos do uso exagerado da maconha, mas do ponto de vista epidemiológico, as drogas lícitas são mais preocupantes pelo seu uso frequente. O fato é que o debate ainda é pouco e precisamos urgentemente tirar o usuário do circuito do crime”, apontou.

O parlamentar também criticou o fato dessa discussão estar atualmente limitada no Brasil a um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda sem definição, quando esse tipo de decisão exigiria um pacto social que deveria passar necessariamente pelo Poder Legislativo. Diante da importância da questão, Antônio Jorge defende a realização até de um plebiscito.

Na mesma linha, o professor de Direito da UFMG, Renato César Cardoso, lamentou que o sistema penal e o sistema de saúde estejam em lados radicalmente opostos nessa discussão. “Como na nossa política, a polarização muito dura inviabiliza o debate, que é necessário para se formular políticas públicas. Mas não podemos chegar nesse debate já com posições definidas. A democracia pressupõe que todos se sentem e discutam para tentar achar consensos mínimos. Eu desagrado os dois lados por achar que é possível chegar a um caminho intermediário”, destacou.

Consulte o resultado da reunião.