Na audiência, foram debatidas a dificuldade de legalização de produtores de queijo artesanal mineiro e a comercialização do produto
João Carlos Leite reconhece o papel da ALMG nos avanços que beneficiam os produtores de queijo artesanal
Segundo Márcio da Silva Botelho, atualmente há 245 queijarias certificadas no Estado

Produtores de queijo artesanal questionam legislação federal

Avanços de lei estadual são reconhecidos em audiência, mas consenso é de que também faltam ajustes na regulamentação.

27/05/2015 - 19:32

"É uma grande indústria que clama por um marco regulatório definitivo”. A afirmação, em tom de desabafo, foi feita pelo presidente da Associação dos Produtores de Queijo da Serra da Canastra (Aprocan), sediada em São Roque de Minas (Centro-Oeste de Minas), João Carlos Leite, em audiência pública realizada na tarde desta quarta-feira (27/5/15) pela Comissão de Política Agropecuária e Agroindustrial da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

A declaração ilustra o dilema vivido atualmente pelo setor em Minas, que conta com uma legislação estadual avançada, mas que tem sua atuação restrita pela falta de sintonia com a regulamentação em nível federal. Esse descompasso dificulta a legalização de produtores e, sobretudo, a comercialização do queijo artesanal mineiro, de qualidade reconhecida nacionalmente, em outros Estados.

Resultado de amplo processo de pesquisa, consulta e negociações com os produtores e órgãos de fiscalização sanitária, a Lei 20.549, de 2012, fruto de um projeto do deputado Antônio Carlos Arantes (PSDB) aprovado pela ALMG, representou mais do que a simples valorização do queijo artesanal mineiro, estabelecendo um novo marco legal para a expansão do negócio, incluindo, além do queijo curado (termo que designa o tempo de maturação do produto), outros tipos de queijo artesanal, como o meia-cura (o preferido pelo mercado), o cabacinha e o requeijão artesanal, abrindo a possibilidade ainda para que outros, que podem ou não ser produzidos com leite de vaca, sejam reconhecidos no futuro.

A grande diferença é que, pelas regras anteriores, para se legalizar, o produtor precisava primeiro adaptar sua queijaria às regras vigentes, para só depois se registrar no Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). Para estimular o cadastro dos produtores no órgão de controle sanitário do Estado, a Lei 20.549 criou um meio termo, em que o produtor fica autorizado a comercializar seus queijos durante um determinado período, que pode inclusive ser ampliado conforme as metas sejam cumpridas, até que consiga a habilitação sanitária definitiva.

Mas, na prática, ainda há entraves que desestimulam o produtor, entre eles a ausência de universalização da habilitação sanitária e, mais especificamente, a complexidade na regularização tributária das chamadas agroindústrias familiares dos queijos artesanais. Os deputados Fabiano Tolentino (PPS), presidente da comissão; Emidinho Madeira (PTdoB), Nozinho (PDT), Inácio Franco (PV) e Rogério Correia (PT) assinaram o requerimento que possibilitou o debate desta quarta-feira (27).

“Com muita luta, conseguimos uma legislação mais à altura da agroindústria familiar, mais prática, objetiva, mas logo depois começaram os aborrecimentos com esse modelo burocrático de Estado, que é totalmente anacrônico. Fizemos a lei, mas ela não chega na ponta com a qualidade que é preciso. A burocracia faz do poder público um inimigo, não um parceiro do produtor, e não vejo vontade de ver as boas coisas acontecerem”, avaliou o deputado Antônio Carlos Arantes.

O deputado Fabiano Tolentino ressaltou o papel da comissão nessa intermediação, fazendo um histórico dos temas já discutidos nesta legislatura. “Nossa intenção é ajudar toda a cadeia produtiva. Afinal, não podemos ignorar o papel da agricultura e da pecuária no PIB do Estado. O produtor rural é aquele que cresce mesmo com a crise, muitas vezes diante da falta de políticas públicas”, lamentou.

Política suprapartidária - O deputado Gustavo Valadares (PSDB) lembrou as dificuldades vividas pelos produtores de queijo artesanal de Medeiros, município vizinho de São Roque de Minas na Serra da Canastra. “A questão tributária é um empecilho. É preciso menos burocracia e mais estímulos à regularização dos produtores informais, uma política suprapartidária, pois são erros cometidos por todos os governos”, afirmou. Posição semelhante foi defendida pelo deputado Rogério Correia. “Não podemos partidarizar o debate, e sim, tentar resolver os problemas”, disse.

O deputado Nozinho ressaltou a importância da Comissão de Política Agropecuária no apoio aos pequenos produtores do Estado. Já o deputado Inácio Franco, apesar de reconhecer a importância de um controle sanitário eficiente, lamentou o alto grau de informalidade no setor.

Agricultura familiar - O termo agroindústria familiar refere-se à atividade agroindustrial de pequeno porte (até 250 m² de extensão), em área rural, gerida por agricultores familiares. De acordo com a consultoria da ALMG, há mais de dez anos o Legislativo estadual tem trabalhado por uma política de inclusão e formalização da agroindústria familiar, de forma a manter os produtos típicos da cultura mineira e aumentar o valor agregado dos produtos provenientes da atividade, como queijos, goiabada e farinhas, entre outros.

A política sanitária das agroindústrias é um tema em evidência nesse debate. A relevância da questão pode ser verificada na medida em que 99% dos cerca de 30 mil produtores de queijo artesanal do Estado trabalham na clandestinidade, sem inspeção e alvará sanitário. Entre os 1% de produtores regularizados, apenas 10% possuem registro para venda do produto em outros Estados. No que se refere à agricultura familiar de outros produtos em geral, a clandestinidade dos produtores cai para 96% - números que apontam para a necessidade de uma política mais forte de inclusão e estímulo à formalização.

Produtores miram fama dos queijos artesanais franceses

Uma das principais lideranças dos produtores de queijo artesanal, João Carlos Leite reconheceu o papel da ALMG, em especial da Comissão de Política Agropecuária, nos avanços obtidos até aqui, que já garantiram o aumento da renda do pequeno produtor. Ao comparar a situação do queijo artesanal mineiro, que é centenário e com raízes remontando ao Brasil Colônia, com a situação vivida pelos produtores franceses, o presidente da Aprocan alerta que ainda há um longo caminho pela frente.

“Não entendo a percepção da sociedade brasileira, que come o queijo artesanal, mas muitas vezes é contra a sua produção. A regulamentação da indústria deve ser diferente da agroindústria familiar. Precisamos inverter essa lógica, pois em qualquer lugar do mundo é assim”, destacou. Segundo João Carlos Leite, as instruções normativas editadas pelo Governo Federal têm facilitado a comercialização, mas dificultado a produção, sob o argumento do risco sanitário. Uma das maiores polêmicas diz respeito ao tempo de maturação, no qual estudos apontam o tempo mínimo de 17 dias, contra uma maturação bem inferior dos queijos artesanais mineiros, sob pena de descaracterização do produto.

“Nós, da Canastra, avançamos muito, e para isso tivemos que ver como esse mercado funciona na França. Há muita semelhança, mas a diferença é que, no caso de Minas, temos mais queijo sendo fabricado do que mineiro para comê-lo. Por isso, temos que levá-lo para fora. Por isso, abrimos uma frente de batalha dentro do Ministério da Agricultura. De nada adiana avançar em Minas e regredir em Brasília”, apontou João Carlos Leite.

Na França, segundo ele, há 458 tipos de queijo artesanais catalogados, famosos e valorizados no mundo inteiro. Na Serra da Canastra, os produtores legalizados vendem a unidade padrão por valores entre R$ 30 e R$ 50, contra um preço médio de R$ 10 praticado pelos produtores que atuam à margem da lei. “A lei da oferta e da procura é implacável, e isso dá margem para abusos. A segurança alimentar sempre foi nosso objetivo, pois temos que preservar um ativo financeiro capaz de gerar milhões de reais”, defendeu João Carlos Leite.

Serro - O presidente da Associação dos Produtores Artesanais de Queijo do Serro, Eduardo José de Melo, apoiou as declarações dadas pelo colega da Canastra, reforçando a importância de uma divulgação melhor para que o consumidor saiba identificar o queijo artesanal de qualidade e produzido legalmente. “Já vi queijo que supostamente foi produzido na minha região sendo vendido a até R$ 5 na porta de supermercado. O consumidor não sabe o que está comprando”, alertou.

Já o diretor de Política Agrícola e Cooperativismo da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Minas Gerais (Fetaemg), Marcos Vinícius Dias Nunes, também chamou a atenção para a necessidade de o Estado dar tratamento diferenciado à agricultura familiar, em comparação com a agroindústria. “Também defendemos a regularização, mas é preciso dar condições para que isso aconteça. Todos somos consumidores e queremos produtos de qualidade. O problema é o grande número de legislações, muitas vezes desconectadas”, analisou.

Fiscalização tenta conciliar normas sanitárias com estímulo à produção

O diretor-geral do IMA, Márcio da Silva Botelho, disse que o órgão trabalha no fio da navalha. “Temos que lidar com produtores habilitados e outros que não são. Uns pedem mais facilidade para produzir, mas também somos cobrados por quem está habilitado para fiscalizar aqueles que não são. Nossa preocupação maior é com a saúde do consumidores; o que temos para atuar é a legislação”, afirmou. Ele informou que atualmente há 245 queijarias certificadas no Estado e dois entrepostos que garantem o livre trânsito do produto para outros Estados.

“O governo tem tentado ajudar o produtor em várias frentes, tanto da porteira para dentro, na produção, quanto da porteira para fora, na comercialização, sobretudo quando o que está em jogo é o sucesso da agricultura familiar”, garantiu o diretor de Infraestrutura Básica da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrário, Fernando Rabelo. Nesse sentido, segundo ele, a legislação estadual está em processo permanente de aprimoramento. “Mas, mesmo na agricultura familiar, o processo de regularização é importante para garantirmos a segurança alimentar, até para que seus produtos tenham acesso a todos os mercados”, comparou.

Na mesma linha, Kalil Jabour, assessor da Superintendência de Tributação da Secretaria de Estado de Fazenda, garantiu que, no aspecto tributário, não há mais obstáculos à produção e comercialização de queijo artesanal. “Não houve a adequação da legislação, no mesmo patamar, no plano federal, e aí surgiram problemas sobretudo para as associações de produtores. Quanto à questão sanitária, o problema é que não há como se regularizar do ponto de vista tributário se isso não for resolvido primeiro”, informou.

Assistência - Por fim, o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária, Nivaldo da Silva, reforçou a importância da preocupação das autoridades com a questão sanitária. “Temos que ter condições sanitárias compatíveis com a segurança alimentar. Para isso é fundamental, por exemplo, garantir leite de qualidade. A lei estadual foi muito bem elaborada, mas temos que garantir as condições para que ela funcione plenamente. Onde o produtor pode se apoiar para ter uma assistência profissional?”, questionou.

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