Assinatura do Ato Institucional nº 1, que suspendeu garantias constitucionais e determinou a realização de eleição indireta para presidente
Durval Ângelo acredita que o golpe militar precisa ser lembrado para que não mais se repita
Militares sob o comando de Ernesto Geisel, general que ocupou a Presidência da República de 74 a 79
Jornais do País noticiam a deposição de Jango
Setores do clero, empresariado e políticos organizaram
Discussão da Constituição mineira de 1989 contou com a participação popular

Uma história que não pode ser esquecida

Os 50 anos do golpe de 1964 motivam reflexão sobre a construção de uma nova democracia.

Por Elaine Moraes
21/03/2014 - 09:03 - Atualizado em 26/03/2014 - 15:23

Cinquenta anos depois do golpe de 1964, ainda há quem festeje a ação dos “bravos militares” que, sob o pretexto “de nos proteger dos inimigos” e do comunismo, instaurou no Brasil anos de medo e silêncio. Embora o próprio Estado já tenha reconhecido que cometeu crimes de lesa-humanidade ao longo do regime militar, ainda há partidários do golpe, que o chamam de “Revolução de 64”. 

Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), deputado Durval Ângelo (PT), a postura daqueles que ainda defendem o golpe militar é uma tentativa de negar o passado, de encobrir os próprios erros. “Um regime que depõe um presidente legitimamente eleito, que exclui o voto direto, que tortura milhares de pessoas, que assassina ou desaparece com mais de 500, que cassa centenas de mandatos políticos, que joga na ilegalidade partidos políticos e sindicatos, que silencia a imprensa, não é ditadura?”. A pergunta retórica pontua o posicionamento enfático do parlamentar. “Parte da nossa história não pode virar poeira. Precisamos lembrá-la até mesmo para não repeti-la”, defende.

O presidente da ALMG, deputado Dinis Pinheiro (PP), também defende a necessidade de se fazer esse resgate histórico. “Relembrar os 50 anos do golpe de 1964 é essencial para retirarmos, do episódio e de seus desdobramentos, lições que possam orientar o nosso comportamento atual, evitando a repetição de erros. O debate, todavia, não deve ser feito apenas de olho no retrovisor, buscando a revisão do passado, mas de modo a direcionar as ações do futuro”, destaca.

A fim de refletir sobre as décadas de repressão e o processo de redemocratização, a ALMG vai promover, nos próximos dias 31 de março e 1º de abril, o Ciclo de Debates 50 Anos do Golpe Militar de 1964. A programação do evento contempla a palestra magna "Direito à Verdade, à História e à Memória" e quatro painéis: "Contexto do Golpe Militar de 64"; "Múltiplos Olhares da Resistência"; "Fim do Regime e Transição: (des)caminhos e processos"; e "Da Redemocratização ao Dias Atuais: Dilemas e Perspectivas". Também haverá uma exposição para relembrar os momentos mais importantes do período compreendido entre 1964 e 1985.

Memória de um golpe anunciado

Para reconstruir a história do regime militar no Brasil, é preciso compreender um contexto mais amplo, em que duas nações - os Estados Unidos e a antiga União Soviética - polarizaram o cenário político no período pós-Segunda Guerra Mundial, a partir de 1945, até início da década de 1990: foi a chamada guerra fria.

“Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos”. Esta foi a manchete do jornal O Globo de 2 de abril de 1964, dia seguinte à deposição do presidente João Goulart (PTB), o Jango. Ele havia assumido a Presidência da República depois que Jânio Quadros (PDC) renunciou ao cargo em 25 de agosto de 1961. Ambos foram eleitos democraticamente em 1960. Pertenciam, na verdade, a legendas adversárias, mas, nesse período, as candidaturas para presidente e vice eram desvinculadas. Conformaram-se, assim, as circunstâncias políticas que levaram à ditadura.

Nesse contexto de guerra fria, Estados Unidos e União Soviética passaram a fomentar disputas ideológicas que evitaram uma guerra nuclear, mas que propiciaram o surgimento de regimes autoritários, sobretudo nos países latino-americanos. O confronto entre o capitalismo e o comunismo chegou assim a terras brasileiras.

“A ditadura militar brasileira não foi um fato isolado na história da América Latina. Na mesma época, regimes semelhantes nasceram de rupturas na ordem constitucional de outros países no subcontinente, tendo as Forças Armadas assumido o poder em consonância com a lógica da guerra fria”, diz o livro Direito à Memória e à Verdade, publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Ameaça vermelha só para brasileiro ver

A contabilidade do regime militar não fecha se não for incluída nessa dívida com o País, sobretudo com a geração que vivenciou as suas consequências diretas, a responsabilidade civil. De acordo com a cientista política Vânia Bambirra, civis também participaram da arquitetura do golpe. Parte do empresariado brasileiro, insatisfeito com a atuação de Jango junto a sindicatos e demais entidades de classe, dentre outras ações, financiou a operação que depôs o então presidente, segundo ela.

Para a cientista política, talvez o maior engodo da história desse período tenha sido o alarde sobre a “onda vermelha”, ameaça comunista que estaria avançando em direção à América Latina. Segundo a pesquisadora, não havia condições estruturais ou políticas de se instalar no Brasil um regime comunista ou socialista. Vânia Bambirra reconhece que algumas lideranças de esquerda participavam do governo janguista, mas esse fato não justifica a ideia de que o País passaria a um modelo de economia estatal.

Ela explica que houve, simultaneamente, na década de 1960, não só em território brasileiro como nos demais países latino-americanos, significativa ascensão de movimentos populares, o que, somado à disposição de João Goulart em promover as chamadas reformas de base (agrária, eleitoral e tributária), motivou a reação desproporcional das elites e dos militares, a quem não interessavam modificações nas regras do jogo e a perda de poder.

O deputado Durval Ângelo também acredita que o comunismo foi apenas um pretexto para se interromper o que ele considera um grande processo de mudanças, de desenvolvimento autônomo, de crescente conscientização e politização do cidadão. "Essa dívida da elite empresarial da época e dos militares brasileiros é impagável”, enfatiza o parlamentar.

Semântica da repressão

Os documentos do Departamento de Ordem Política e Social em Minas Gerais (Dops-MG), já disponíveis no site do Arquivo Público Mineiro, demonstram que o comunismo exigiu grande esforço do aparato de repressão. Os simpatizantes dessa vertente ideológica foram objeto de investigação desde 1929. Esse foi o grande eixo da atividade da polícia política entre 1964 e 1968, destacando-se os temas relacionados ao Partido Comunista. Alguns termos e expressões são utilizados de forma recorrente nos arquivos e ganham, muitas vezes, conotações mais singulares.

Termo/Expressão Significado
Agitadores Qualquer pessoa que se manifestasse publicamente contra o regime.
Camaradas Partidários ou simpatizantes do comunismo.
Corrente Movimentos de esquerda em Minas Gerais.
Elementos Pessoas suspeitas de participar de movimentos de esquerda.
Hipotecou solidariedade Pessoas que participavam de reuniões de sindicatos ou movimentos contrários ao regime, mas que não se manifestavam. Uma forma de dizer que, apesar de não ter falado, ele "concordou" com o discurso dos demais.
Ideologicamente nada consta Pessoas que não estavam envolvidas nos movimentos de resistência.
Infiltrado Agentes do Dops que se passavam por militantes para investigar os movimentos.
O assunto foi ventilado Os agentes do Dops usavam a expressão para se referir a informações obtidas como infiltrados, mas não sabiam a quem atribuí-las.
Revolução Termo empregado pelos militares para se referir ao golpe de 1964.
Subversivos Comunistas.

Abertura e redemocratização

Ao longo das duas décadas do regime militar, houve 10 mil exilados, 130 banidos do País, 4.862 pessoas com direitos políticos cassados, além de mortos, torturados, desaparecidos e 50 mil pessoas detidas apenas nos primeiros meses da ditadura. Embora não haja compensação capaz de reparar o sofrimento dessas pessoas, desde a redemocratização, após 1985, a ALMG buscou corrigir os erros cometidos no período de exceção e vem atuando na consolidação da democracia. 

O presidente da ALMG, deputado Dinis Pinheiro, explica que o Parlamento mineiro tem trabalhado na construção de políticas públicas mais democráticas e destaca a aprovação da Constituição Estadual em 1989. “A Constituinte foi palco privilegiado de debates e acolheu os mais variados movimentos e tendências”, afirma.

Nesse processo de abertura para a sociedade, a ALMG realiza eventos institucionais que estimulam a participação política dos cidadãos: são seminários legislativos, fóruns técnicos e ciclos de debates, além das audiências públicas de comissões na Capital e no interior do Estado. A meta de aproximar o cidadão do Parlamento faz parte do Direcionamento Estratégico, conjunto de diretrizes para a atuação da Casa.

Dinis Pinheiro salienta ainda a restituição dos mandatos dos deputados estaduais cassados em 1964 - Clodesmidt Riani, José Gomes Pimenta (Dazinho) e Sinval Bambirra - e, mais recentemente, a devolução simbólica do mandato do deputado Armando Ziller, que havia sido cassado em 1947 por pertencer ao Partido Comunista Brasileiro.

Esta é a primeira parte da matéria especial sobre os 50 anos do golpe de 1964. Na próxima quinta-feira (27/3/14), saiba como se deu a cassação dos deputados Clodesmidt Riani, José Gomes Pimenta e Sinval Bambirra.